Andaluzia

Espanha de alma árabe


A mesquita de Córdoba é a segunda maior do mundo, só perde para a de Meca. Curiosamente ela está localizada num país católico e foi transformada em igreja cristã. O monumento era tão grandioso que o Rei Fernando III de Castela não quis destruí-lo, fazendo-lhe apenas modificações para torná-la uma catedral



A Espanha dos belos monumentos mouriscos, da sensual dança flamenca, das altas torres medievais e do rio Guadalquivir pode ser resumida numa palavra: Andaluzia. Uma herança de arte, ciência e guerras vive nesta região do sul do país, que reúne oito províncias, joias como Sevilha, Córdoba e Granada. Ali, o charme de uma fascinante cultura, com elementos árabes e ciganos, está mais vivo do que nunca, sem falar de algumas das mais fantásticas paisagens da Europa.
No sul da Espanha, a palavra frontera tem um sentido todo especial. Não é apenas a simples divisão entre regiões ou países. Mas, sem traçado definido, espalha-se de forma inconfundível pelas províncias de Almería, Cádiz, Córdoba, Huelva, Jaén, Málaga, Sevilha e Granada. No passado, a frontera era a área de conflito entre espanhóis cristianizados ainda no tempo da colonização romana e os invasores das tribos do norte da África, quase todos vindos da região de Mauritânia e por isso chamados de mauros ou mouros. Hoje, a frontera é quase um ser vivo, uma herança que se mostra nas muralhas, casarões, templos e rostos de seus habitantes, que testemunharam as reviravoltas de uma história de fé e de guerras.


A Praça de Espanha, em Sevilha


A Andaluzia guarda intocadas as tradições que melhor traduzem a alma espanhola. Entre outros encantos, a região oferece ao mundo a dança e o canto flamencos, a arquitetura mourisca e o charme de suas cidades. Ali está a Espanha aristocrática das grandes fazendas - fincas -, onde são criados os touros que lutam nas arenas, e os cavalos de raça idolatrados pela nobreza. O rio Guadalquivir, correndo desde Jaén até o oceano atlântico, é a veia aberta que transporta vida e história através dos campos e olivais da região.
A conquista dos mouros começou por Cádiz e, se o viajante de hoje tentar reconstituir o primeiro olhar dos invasores de ontem, vai encontrar um grande horizonte de campos verdes. Se seguir o litoral, chegará às sofisticadas areias de Marbella, em Málaga, um paraíso mediterrâneo. Mais ao norte, terá outra inesquecível visão: a Catedral de Córdoba, à beira do Guadalquivir. E, no rumo leste, chegará à capital da Andaluzia, Sevilha, onde os edifícios modernos convivem com as torres medievais mencionadas por Federico García Lorca.
Os monumentos da Andaluzia simbolizam o espírito da frontera, e talvez por isso eles se tornaram, ao longo dos séculos, mais famosos do que suas próprias cidades. De longe, Sevilha traduz-se pelo grandioso minarete do século XII, a Giralda, mais tarde transformada em torre de sinos da grande catedral (o segundo maior espaço gótico do mundo, iniciado em 1402 e perdendo apenas para a Catedral de São Pedro, em Roma). A Torre de Ouro, de 1220, e o Palácio de Alcazar, de 1181, ajudam a compor um cenário inconfundível, cortado pelo rio.


A Praça de Espanha, em Sevilha, mostra o requinte da arte dos azulejos.




Azulejo feito em homenagem a Madrid.


Azulejo feito em homenagem a Valladollid 


O fosso e as pontes fazem parte do cenário.




A Torre del Oro em Sevilha, monumento de 1220






Aristocracia está presente nas grandes fazendas de criação de cavalos de raça.



Quando se fala em passado na Andaluzia, deve-se recuar no tempo até 1.200 anos antes de Cristo, quando o reino de Tartesos foi fundado próximo à foz do Guadalquivir, na costa sudoeste do país. O comércio de prata e estanho, vindo das minas ao norte, prosperava naquela época, a ponto de atrair a cobiça de outras etnias guerreiras da Europa e da Ásia. Os fenícios invadiram o reino e em seu lugar fundaram uma colônia chamada Gadir - a moderna Cádiz; cartagineses, gregos, romanos, vândalos e visigodos vieram em seguida, iniciando uma miscelânea de povos e costumes.
A invasão que mudaria a face do país começou no ano 711 d.C. Os mouros cruzaram o estreito de Gibraltar, levando uma era de dominação que duraria quase oitocentos anos. Foi tempo bastante para estabelecer a marca da dinastia dos sultões omíadas (756-1031) e imprimir à paisagem elementos árabes que a tornaram única. Mas os reinados mouros não resistiram ao fim da Idade Média. Em 1492, os Reis Católicos Fernando e Isabel, liderando o surgimento de um estado unificado, expulsaram os muçulmanos e abriram caminho para que a Espanha se tornasse o centro de um poderoso império, sustentado pela exploração dos tesouros do Novo Mundo.
A presença dos mouros permanece viva na Espanha, tanto quanto o canto flamenco, herdado dos ciganos. Basta seguir a etimologia. O Guadalquivir, que faz da Andaluzia uma das regiões mais férteis do país, é uma transliteração do árabe wadi al-kebir, ou o rio grande. Algeciras (antigo porto romano em Cádiz, retomado pelas tropas cristãs à custa de muito sangue, depois de um sítio de vinte meses, em 1344) significa a ilha. Alhambra, o fantástico palácio-fortaleza que abrigou os monarcas mouros em Granada, quer dizer o vermelho (uma provável alusão à cor dos tijolos usados em sua construção). E os alcazares, monumentos de arquitetura que brindam os visitantes nas cidadezinhas andaluzas, são nada mais do que os castelos.
As linhas da Catedral de Córdoba constituem talvez a mais extraordinária expressão da arquitetura hispano-muçulmana. Seus primeiros fundamentos datam da época da invasão dos visigodos, que, convertidos ao cristianismo, decidiram homenagear São Vicente. No século VIII, Adderraman I quis honrar Alá com uma grande mesquita - a segunda maior do mundo, depois da de Meca.
Para isso, aproveitou a estrutura da igreja visigótica e ergueu um grande templo ao estilo muçulmano, com salas de orações em separado para homens e mulheres, lava-pés e aposentos para as abluções. O soberano só não contava com a derrocada do seu reino. Em 1523, a obra foi reiniciada, desta vez como catedral cristã, ornada com mármore e bronze, com 52 capelas e 19 portas que retratam cenas da vida dos santos e de Cristo. Hoje, o resultado é uma mesquita com um impressionante labirinto de colunas árabes, cercando a catedral cristã, com trabalhos renascentistas e greco-romanos. Uma obra de arte na qual os estilos se misturam sem, no entanto, destoar.
Córdoba também se localiza às margens do Guadalquivir. Seu passado mourisco, com ruas estreitas e sinuosas, fala tanto do passado quanto as ruínas de torres e portões do tempo em que foi uma cidade defendida por imensas muralhas. Fundações construídas pelos romanos ainda estão lá, em meio às colinas adornadas de laranjeiras e oliveiras. Na ponte que liga Córdoba aos subúrbios do outro lado do rio, a arquitetura árabe, com dezesseis arcos que lembram o desenho da mesquita, convive com bases romanas de mais de dois mil anos de idade. E assim sobrepõe-se os ingredientes da cultura andaluza, uma mistura tão sublime de heranças romanas, visigóticas, cristãs, afro-muçulmanas, ciganas e judaicas que já não se pode dizer quem era minoria e quem predominava.
Granada é outro destino irrecusável na Andaluzia. A cidade divide-se nas três áreas maiores: a Antequeruela, fundada por refugiados de Antequera (região central da província de Málaga) em 1410 e situada nos limites da colina do Alhambra; o bairro mourisco de Albaicín (rabad-al-baiazin, ou refúgio dos falcoeiros); e a Granada propriamente dita, onde fica a Catedral de Santa Maria da Encarnação, iniciada em 1529 e concluída somente em 1703. Numa de suas muitas capelas, a famosa Capilla Real, está o túmulo de Fernando e Isabel, os Reis Católicos e primeiros soberanos da Espanha unificada.
Voltando à capital, como quase toda a Andaluzia, Sevilha vive de turismo, comércio, grandes criações de touros e cavalos e indústrias. Vive também da atmosfera de fantasia que cerca seu nome. Ao caminhar pela cidade, tem-se a impressão de esbarrar num novo e lendário personagem a cada passo. Bartolo, o célebre barbeiro de Sevilha, poderia estar de navalha na mão, atendendo aos clientes numa barbearia num dos becos do bairro antigo, Triana. O Hospital de la Caridad guarda as pinturas de Don Miguel de Manãra, que ali se recolheu para descansar de um passado marcado por inúmeras conquistas amorosas - ele teria sido o Don Juan original, o mais incansável sedutor da literatura espanhola. Não fosse a concorrência de indústrias modernas instaladas no bairro de Los Remédios, talvez pudéssemos ver a velha fábrica de charutos onde trabalhava a cigana Carmem, retratada na ópera de Bizet.




Os pueblos blancos, cidades das serras de Andaluzia, como Setenil, sobreviveram ao tempo e às sucessivas guerras. Elas compõem a célebre frontera




O Pátio dos Leões, no interior do Alhambra, exibe as colunas da tradicional arquitetura mourisca








Na Andaluzia rural, a paisagem pode ser bem mais monótona do que em suas encantadoras cidades. De repente, como para animar a vista, surgem os famosos pueblos blancos, cidadezinhas com dois mil a dez mil habitantes, nos vales da Sierra Morena, cujas casas pintadas num branco imaculado atraem imediata simpatia. Por ali se espalham castelos medievais, cercados de oliveiras, onde as muralhas que marcavam a presença muçulmana ainda são visíveis. No irresistível roteiro de Andaluzia, estas relíquias do intrigante passado espanhol não podem faltar.

Fotos: reproduções/arquivo A Relíquia
Leia também: “Estreito de Gibraltar: Rota das Civilizações”

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