Arte conceitual e atualidade

Ferreira Gullar


Pode a arte se ajustar, como os produtos industriais, às megaexposições internacionais bienais?

Por mais desfavorável que seja nossa opinião acerca da arte conceitual, não pode ignorar o fato de que esta tendência está presente, mais que qualquer outra, em nossa vida cultural, ocupando as salas de exposições, os museus e as bienais. Este fato, por si só, indica que a arte conceitual tem a ver com a realidade em que vivemos, com nossa época, com os fatores culturais que a balizam e definem. Por isso, se quisermos ter dela uma visão correta, como fenômeno cultural que é, temos que levar em conta alguns fatores que nem sempre são considerados quando se discutem tais problemas. São fatores ligados ao funcionamento do meio artístico, isto é, ao sistema institucional que possibilita a circulação das obras de arte, sua exposição e difusão.

Para melhor apreendermos o problema, voltemos aos começos do século 20, quando têm início as drásticas mudanças estéticas que dariam origem aos movimentos artísticos daquele século e, como conseqüência delas ou das mesmas causas que as geraram, o surgimento dos museus de arte moderna e instituições internacionais ligadas à exibição e promoção da arte contemporânea. Dentre essas, destaca-se a Bienal de Veneza, fundada em 1895, que passa depois a desempenhar um papel muito importante nas décadas seguintes. Esta se torna uma espécie de centro onde as tendências artísticas mais marcantes e reconhecidas encontram sua melhor representação.

Se é verdade que a proliferação de tendências faz com que as mostras internacionais se multipliquem, pouco a pouco as grandes exposições abrangentes vão se impondo. Em 1951, nasce a Bienal de São Paulo, que vem desempenhar um duplo papel: amplia a tendência às grandes mostras abrangentes e introduz a América Latina no sistema internacional de arte. Em 1959, surge a Bienal de Paris, voltada para arte de artistas jovens.

Mas o que significa o surgimento dessas exposições internacionais, que estou chamando aqui de "abrangentes"? São certames que pretendem mostrar a arte atual do mundo inteiro, ou seja, nascem do processo de globalização, que se intensificou a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Este processo, como se sabe, foi impulsionado pelo desenvolvimento econômico e o progresso técnico, tanto no campo de comunicação como dos transportes. O mundo se transforma na "aldeia global", de que falava McLuhan, e, com isso, amplia-se em termos mundiais o mercado de arte, de que essas megaexposições são expressão no plano comercial. Algo parecido com as feiras internacionais de automóveis ou de eletrodomésticos. E aqui tocamos num ponto importante do problema: a arte se ajusta, como os produtos industriais, a essas megaexposições internacionais bienais? A produção artística é capaz de, preservando sua natureza e exigências, atender a essa demanda?
A resposta, no meu entender, é não.

Preservar a natureza da obra de arte, como a concebemos, é vê-la como criação desinteressada e expressão de intuições e descobertas poéticas, o que implica sutil e demorado trabalho com a linguagem. Esta liberdade e independência do artista é que torna possível aprofundar a expressão e efetivamente inovar. Entendida deste modo, a arte situa-se no pólo oposto ao da produção industrial que, mesmo quando se vale do estético, visa prioritariamente à venda e, por isso mesmo, atender ao gosto da maioria; como o objetivo final é o lucro, torna-se imprescindível economizar o tempo gasto na produção e produzir em grande quantidade. Por essas características, a produção industrial atende naturalmente aos apelos de um universo em que a rapidez e a quantidade contam mais que a maturação e a qualidade estética.

Em artigo anterior, nos referimos rapidamente à semelhança entre as megabienais de arte e as feiras de produtos industriais. É um fato que merece atenção porque tem implicações mais importantes sobre o curso da arte do que pode parecer à primeira vista. A globalização, na medida em que provocou e possibilitou certames internacionais, reuniu num mesmo recinto manifestações artísticas de dezenas de países, que possuem características culturais distintas e não apresentam o mesmo nível de desenvolvimento econômico e tecnológico. O resultado inevitável, numa primeira etapa, foi a imposição das tendências artísticas dos países hegemônicos sobre os demais. Outro aspecto desse processo de homogeneização cultural - e como consequência dessa homogeneização - foi o esgotamento das experiências inovadoras, que se impunham como justificação necessária dessas megaexposições internacionais. De fato, que sentido teria realizá-las se não fosse para mostrar (como no caso das feiras industriais) as últimas novidades do setor? Deste modo, tornada a novidade condição si ne qua non para participar dessas mostras, os artistas que permaneciam fiéis a suas exigências estéticas foram sendo aos poucos descartados delas e substituídos por um novo tipo de artista bem mais ajustado à nova visão: daí a teoria de arte efêmera, que se ajusta perfeitamente a um universo artístico movido pela exibição de "novas atrações".
Não quero simplificar a questão, que sei complexa e multideterminada. Não ignoro que a busca sôfrega pela novidade tem também raízes na ruptura - anterior às megaexposições - com os princípios tradicionais da arte, que começa com o Cubismo e desemboca no niilismo dadaísta. Não resta dúvida, porém, que os fatores mencionados - a globalização e os certames internacionais - ofereceram um caminho propício às tendências radicais que denunciavam o valor estético como mero hábito. Esta visão duchampiana - que conduziu seu inventor a uma produção extremamente limitada de obras -, ao ser apropriada pela "nova classe" do mundo da arte, abriu caminho para uma espécie de vale-tudo, onde a improvisação se sobrepõe a qualquer norma ou princípio.

A presença dessa tendência hoje no Brasil e no mundo torna descabido negá-la como um fato cultural da época. Queiramos ou não, a aprovemos ou não, ela existe e conta com o apoio, em nível nacional e internacional, de museus e institutos culturais.

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