Os Santuários da Cultura na Bulgária

Vista do Mosteiro de Rojen, fundado no século XIV

 Durante os cinco séculos da dominação otomana, foi nos mosteiros que a Bulgária conseguiu conservar, e mesmo desenvolver, a cultura do país. Eles tiveram participação decisiva no processo de manutenção da nacionalidade, já que, além de suas funções religiosas, se tornaram verdadeiros refúgios para escritores e pintores, e centros de preservação de tudo o que já havia sido criado. Hoje aproximadamente cem deles ainda mantêm suas atividades culturais e, junto com dezenas de outros - muitas vezes em ruínas -, são alvo do respeito de todo o povo búlgaro.

A Bulgária talvez seja o único país do mundo que comemora todos os anos a criação de seu alfabeto. No dia 24 de maio, conhecido como Dia da Cultura Nacional, inúmeros desfiles e consertos, apresentados por estudantes, professores e personalidades culturais, celebram a importância da cultura em um país onde a sua preservação foi um dos alicerces da resistência a todos os invasores.

Durante o século IX criar um alfabeto significava uma insurreição contra a lei que conferia a apenas três línguas - latim, grego e hebraico - o privilégio de traduzir as palavras de Deus. Os irmãos Cirilo e Metódio resolveram enfrentar todos os contratempos e criaram um novo alfabeto, fator determinante para o progresso da Bulgária. Cirilo, ao traduzir livros religiosos, afastava a população da missa latina e criava sérios problemas com o Vaticano. Com o novo alfabeto a Bulgária consguiu um desenvolvimento acelerado, que só seria interrompido com o início da dominação otomana turca, no ano de 1396.

Altar da igreja do mosteiro de Rila
 Durante cinco séculos os otomanos permaneceram na Bulgária e destruíram sistematicamente igrejas e palácios, manuscritos e obras de arte. Mas a cultura búlgara conseguiu subsistir, em grande parte graças aos numerosos mosteiros e igrejas, dispersos pelos recantos mais escondidos do país e que se tornaram centros culturais durante todos os anos da dominação.

Neles se refugiaram e trabalharam os escritores, os artistas plásticos e qualquer pessoa que tivesse alguma colaboração a dar ao acervo cultural do país; neles ainda foram escondidos inúmeros manuscritos, ícones e até armas que puderam ser salvos da depredação do invasor. Durante os primeiros séculos do jugo otomano, era proibida a construção de grandes edifícios, principalmente igrejas, que ficavam meio enterradas no chão e quase não se distinguiam das casas. Mas os búlgaros nunca perderam o sentimento de superioridade cultural em relação aos otomanos, e continuaram construindo escolas e casas de leitura e incentivando o teatro amador, sob a observação desconfiada do estrangeiro. Quando ele for embora, no século XIX, o renascimento nacional acontecerá naturalmente, como uma consequência da própria maneira de vida do povo búlgaro.

Jesus Cristo, ícone de Zahari Zograf

A independência espiritual e cultural da Bulgária serve como exemplo e introdução para todo o seu desenvolvimento. Em certo aspecto, deve-se mesmo admirar que os búlgaros criam o modelo das culturas nacionais independentes, que servirá  de base à Europa e constitui um modelo desconhecido e impossível na antiguidade. Todo esse processo, por necessidade, passa pelos mosteiros, que representam o próprio intelecto social do país. As escavações arqueológicas contemporâneas na antiga cidade de Preslav - a segunda capital búlgara, do ano de 893 - indicam as diferentes funções dos mosteiros. Preslav, criada em princípio como centro religioso e mais tarde político, está cercada por um anel dourado de mosteiros, todos eles mais ou menos especializados. Num deles se cria a escola da escrita de Preslav, em outro pintam-se ícones, e num terceiro elaboram-se obras religiosas e bordados cristãos (epítropes, escudos, mantas). A Bulgária transmite ao Norte e ao Leste as doutrinas cristãs, acompanhadas, segundo as últimas pesquisas, por uma música vocal do tipo eslavo. Terra de Orfeu - o deus do canto -, ela possui alguns dos melhores baixos do mundo, e seus mosteiros mantêm ainda a tradição secular na qualidade dos cantores.
Em 1018 os mercenários normandos de Bizâncio terminaram de uma vez por todas com a antiga Preslav e destroem seus mosteiros. Mas durante os dois séculos seguintes, os mosteiros que cercam o outro centro político-cultural, Ohrid, tornam-se particularmente ativos. Nesses mosteiros a arte da pintura de ícones orientais atinge o seu apogeu com o ícone de Ohrid.

Ícone "Ressurreição de Cristo", de Dimitar Zograf
Os mosteiros também cercam a capital do Segundo Estado búlgaro (1187) - Veliko Tarnovo. Ainda hoje nesse centro cultural existem cerca de trinta habitações, uma prova da atividade dos monges búlgaros daquela época, da qual nos separam quase oito séculos. A história de Tarnovo sob o jugo otomano é cheia de tragédias, com as revoltas populares sempre dominadas de maneira violenta. Com a libertação do país, é em Velikp Tarnovo que acontece a primeira assembléia nacional e a primeira constituição búlgara é adotada.

Ícone de Zahari Zograf, a "Santa Virgem", do Mosteiro de Batchkovo
Durante a dominação dos otomanos os mosteiros foram os verdadeiros instituidores da nacionalidade búlgara. Neles sempre existiram o inconformismo em relação ao invasor e a esperança de renovação do país. Os mosteiros renovavam-se, reconstruíam-se e ampliavam-se constantemente, através das ajudas conseguidas pelos taxadores. Isso fez com que restem poucos prédios conservados da época do Segundo Estado. Do primeiro, temos a arquitetura preservada somente na região de Ohrid. No século XVIII os lutadores para a libertação nacional - haidúti, guerreiros refugiados nas montanhas - e os monges - igúmen - formavam uma comunidade patriótica inseparável. O sacerdote dava com antecedência a absolvição aos haidúti por todos os homicídios que seriam cometidos na luta contra os invasores. Os mosteiros colocaram-se ao lado da revolução nacional e os monges ergueram o escudo e a bandeira com o brasão do país - um leão sentado sobre as patas traseiras, todo bordado em ouro. Aí se organizam os levantes, e alguns mosteiros, como o de Driánovo, tornam-se verdadeiros campos de batalha. Talvez somente nos Bálcãs - além da Bulgária - existia uma síntese tão perfeita entre sabedoria, tradição e revolução. Esse fato é marcante para a história do país e em grande parte caracteriza a visão que os búlgaros têm do mundo. No ritual da organização revolucionária, os guerreiros juravam diante da cruz colocada sobre o punhal e a pistola cruzados.

Mosteiro de Batchkovo, fundado em 1803 por Gregório Bacuriani

Durante o Renascimento os mosteiros tornaram-se centros de intensa vida social. Comemorando o padroeiro - o santo do mosteiro -, reuniam-se os habitantes de toda a região, e até do país inteiro quando o santo era de estima geral. Nas planícies verdes em torno do mosteiro, as danças nacionais e o encontro de outras diferentes manifestações culturais ajudavam a conscientização nacional dos búlgaros. Nesta época ressurgem as imagens estranhas, esquecidas durante quinze séculos, do antigo estilo animalesco dos esquistos. Esses relevos lembram a existência da cultura anterior, dos trácios.*
Os mosteiros tornaram-se reservas culturais sob a proteção do Estado. Os mosteiros têm uma hierarquia toda especial para os búlgaros. Os mais antigos são os mais respeitados, embora também sejam considerados a grandeza e o esplendor dos prédios, a significação da pintura religiosa e a presença do ícone milagroso. Por isso, ao falar nos mosteiros da Bulgária, deve-se por necessidade respeitar essa hierarquia, na qual o primeiro é sem dúvida o de Rila. Habitação de São João de Rila, que aí viveu em meados do século X e é praticamente o fundador do movimento dos eremitas na Bulgária, o mosteiro, situado nas florestas da montanha que lhe deu o nome, tornou-se um templo nacional. Contam as crônicas que o czar búlgaro Pedro encontrou-se com o santo.

O primeiro edifício do Mosteiro de Rila foi construído logo após a morte do santo, mas durante o jugo bizantino decaiu muito, não existindo nenhuma enformação deste período. De uma nova construção feita na época feudal resta somente uma torre, que impressiona pelo aspecto resistente e pela beleza em seus 23 metros de altura. Aí estão conservadas as relíquias do período, como dois evangelhos escritos no século XIV. Este mosteiro gerou arquitetura, pintura e palestras literárias. Nele os séculos acumularam tesouros, entre os quais os trabalhos do maior pintor do renascimento búlgaro; Zahari Zograf. Nos séculos XVIII e XIX surgiu a escola dos compositores musicais de Rila. Aí nasceu uma das mais importantes escolas gráficas da Bulgária. Nos três primeiros decênios do século passado o mosteiro foi completamente restaurado do grande incêndio que, em 1833, destruiu a igreja e os edifícios à sua volta.
O Mosteiro de Batchkovo é o segundo a ser lembrado por sua importância religiosa, histórico-cultural e nacional. Situado nos montes Ródope, à margem do rio Tchaia, ele data do ano de 1083 e foi construído por Gregório Bacuriani. O testemunho mais antigo é dado pelo ossário, um dos poucos monumentos que restaram do primeiro renascimento bizantino na Bulgária. Na igreja encontramos novamente o gênio de Zahari Zograf. Renovador da escola em seu país - antes uma instituição medieval e religiosa -, Zograf foi ainda o fundador da imprensa periódica na Bulgária. Em Batchkovo se conservaram diversos períodos artísticos, do século XI até o XIX. Aí, num complexo único, podem ser seguidas as etapas principais do desenvolvimento da pintura búlgara durante nove séculos.

Mosteiro escondido nas montanhas

Para chegar ao terceiro mosteiro, por ordem de importância, deve-se seguir para o norte, pelas cidades de Asenovgrad e Plovdiv, e depois escalar a montanha de Stara Platina. A cidadezinha de Trouan está situada nas encostas do sul, e o seu mosteiro cerca de vinte quilômetros a leste, à margem do rio Tcherni Ossam. As crônicas afirmam que foi edificado em 1600 pelo monge superior Kalistrat. Do antigo mosteiro, restou somente a chamada pedra do trono. Mas há uma única testemunha segura: acima do mosteiro, no alto da montanha, ergue-se um pequeno santuário, de São Nicolau. Nele foram conservadas portas com cenas do paraíso talhadas em madeira pelo monge Cipriano em 1794. O santuário e a incrível qualidade do trabalho de Cipriani atestam ter aí existido alguma habitação eremita que desenvolvia as artes.

Cúpula da igreja do Mosteiro de Troian

A atual igreja de Troian foi construída em 1835. Como em todas as igrejas peristílicas, as paredes estão cobertas por pinturas policromáticas, mais uma obra de Zahari Zograf. Segundo os cânones da Igreja Ortodoxa, nos muros exteriores encontram-se cenas do Apocalipse e outras, simbólicas, ligadas à história da Igreja. As pinturas da entrada formam a mais completa coleção de santos búlgaros. O irmão de Zahari Zograf, Dimitar, fez os ícones do altar. Se Zahari não tem rival nas pinturas murais, Dimitar também não o tem na arte psicológica: os seus santos transmitem uma rica vida interior, frequentemente dramática, e que nas madonas se eleva até à arte dos antigos mestres de Siena.

Além desses três mosteiros de Rila, Batchkovo e Troian, existem centenas de outros espalhados por todo o país e que também colaboraram no trabalho de preservação da cultura nacional. Um trabalho que se mostra hoje plenamente recompensado pelos resultados: a Bulgária é um país onde praticamente não existe o analfabetismo e, segundo as estatísticas da UNESCO, que ocupa um dos primeiros lugares do mundo pelo número de títulos e tiragens de livros. O governo propicia fundos para a manutenção dos mosteiros, que funcionam hoje principalmente como relicários da arte e da cultura que eles tão bem souberam defender.

Símbolo do movimento popular que libertou o país, o Mosteiro de Rila foi o centro da cultura na Bulgária




Dilma Rousseff e a Bulgária


A pequena cidade de Gabrovo, situada no meio das montanhas dos Bálcãs na Bulgária, não mede esforços para atrair uma visita da presidente do Brasil, Dilma Rousseff, ao município onde nasceu seu pai. Para conquistar a petista, a cidade organizou uma exposição em homenagem a Dilma no Museu Histórico de Gabrovo, onde é possível refazer os passos da família Rousseff. Na mostra, uma árvore genealógica com fotos dos ascendentes da presidente mostra a história da família paterna de Dilma, que até hoje vive na Bulgária. A reconstituição da trajetória dos Russev - sobrenome original, antes de ser transformado em Rousseff no Brasil - só foi possível graças à única descendente que restou em Gabrovo, uma prima de segundo grau de Dilma, Toshka Kovacheva.

A exposição "As raízes de Gabrovo de Dilma Rousseff" foi feita com a colaboração da pesquisadora Krassimira Cholakova. A principal emissora de televisão búlgara, a TV7, participou da abertura, já que o nome de Dilma circula cotidianamente na imprensa do País.

A prima búlgara de Dilma, Toshka, pretende enviar a ela um CD contendo as imagens e um histórico da família Russev. A prova do empenho das duas em sensibilizar a presidente a se reaproximar do restante da família no leste europeu é que o folder da exposição é bilingue, escrito em búlgaro e português.

Dilma nunca visitou os parentes na Bulgária, embora tenha trocado cartas com o seu meio-irmão, Luben-Kamen Russev, pouco antes da sua morte, em 2008. O pai deles, Petar Steganov Russev, era advogado em Sófia, mas repentinamente decidiu abandonar a família e o país e tentar novas oportunidades no ocidente. "Nós nunca soubemos por que ele foi embora. Só fomos receber a sua primeira carta 18 anos depois", recorda-se Toshka. Petar deixou a Bulgária quando sua esposa à época, Evdokiya Yankova, estava prestes a dar à luz Luben-Kamen, irmão de Dilma, que jamais conheceu o pai. Depois de morar na França e na Argentina, Petar optou pelo Brasil, onde trocou seu nome para Pedro Rousseff e formou família em Belo Horizonte. Dilma Vana Rousseff, a presidente, foi a segunda filha que o imigrante búlgaro teve com a nova esposa, Dilma Jane Silva.


Fotos: reprodução
*A Relíquia publicou matéria sobre
a Arte Trácia da edição nº 157.

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