Encontros e desencontros com o Islã

Para encerrarmos, nada melhor do que repensarmos os discursos ocidentais acusando o mundo islâmico de desrespeitar o patrimônio histórico e cultural da humanidade. Dificilmente os ocidentais estão em condições de julgar e condenar outras sociedades neste particular aspecto.
Alguns exemplos são esclarecedores o suficiente. Vejamos um caso paradigmático, o do manuscrito "Shâh-nâmeh Houghton", um "Livro dos reis" - uma obra-prima - , originalmente composto por 258 miniaturas, realizado no século XVI para Tahmasp I (1524-76). A conceituada revista Connaissance des Arts, no. 512, Dezembro de 1994, nas páginas 7, 10 e 11, publicou um importante editorial sobre o valor de uma obra de arte, e uma reveladora entrevista com o marchand responsável pela negociação, para discutir as "questões de conservação e de valor relativo das obras de arte", por ocasião da troca daquela obra de arte persa, propriedade dos herdeiros de um "grande bibliófilo", por um óleo sobre tela de Willem de Kooning, "Woman III", que se encontrava no Museu de Arte Contemporânea da capital do Irã (alvo constante de acusações de vandalismo).
De acordo com a revista francesa, este manuscrito, com suas 258 miniaturas, ficou intacto do século XVI até 1959, quando Edmond de Rothschild o vendeu ao herdeiro da fortuna Corning Glass, Arthur Houghton, considerado "grande bibliófilo", tendo inclusive ocupado a presidência do Metropolitan, etc., em suma, um grande nome, uma bela reputação no mundo da arte. E o que faz o novo proprietário da obra-prima, de um testemunho privilegiado da arte islâmica? Desde 1962, o "grande bibliófilo" - diz a lenda que os colecionadores amam seus objetos... - começa a desmembrar o que durante quatro séculos permaneceu intacto.
Ele expõe algumas miniaturas em uma galeria em Nova Iorque - oficializando publicamente a fragmentação e a possível futura dispersão das miniaturas do manuscrito - , doa 78 fólios (com evidentes vantagens fiscais) em 1970 para o Metropolitan - que aceita a oferta, o que implica no fim da integridade física da obra - , coloca outros 7 fólios à venda na Christie's em novembro de 1976, e, em 1988, mais 14 fólios vão para o mercado. Em resumo, em 35 anos, o "grande bibliófilo" reduziu um manuscrito com 258 miniaturas a um fragmento que, na época de sua morte, não contava com mais de 118, isto é, menos da metade do documento original. Seus herdeiros procuram vender o que sobrou do manuscrito persa, e a solução é oferecê-lo, por intermédio de um marchand inglês - que o considera o mais importante manuscrito de todos os tempos e de todas as culturas, ponto culminante de um processo de 200 anos de produção artística, e que já havia conseguido adquirir um dos fólios vendidos - ao governo do Irã, em troca de uma obra de arte da qual o Islã tenha vontade de desfazer-se, para que eles, mais tarde, possam alienar esta última.
Relatando a trajetória e as vicissitudes da obra-prima persa desmembrada por ocidentais, Connaissance des Arts não só discute os critérios de avaliação monetária utilizados no mercado, ao colocar no mesmo patamar uma obra-prima de mais de quatro séculos e um quadro pintado na segunda metade do século XX - lembra o editorial que, mesmo sendo a série "Woman" uma espécie de síntese da arte de De Kooning, David Sylvester, que estava organizando uma retrospectiva De Kooning na Tate Gallery, considerava que o manuscrito "valia vinte obras" do pintor radicado desde 1926 nos EUA -, como também (e acreditamos ser o ponto mais importante de toda esta história) o papel dos supostos encarregados de zelar pela preservação do patrimônio histórico e cultural mundial, que são acusados pela revista de vandalismo e de cupidez.
Contrastando com o que a publicação classificou como uma ação pronta, circunspecta e digna do governo do Irã "para recuperar este glorioso fragmento de sua cultura", o editorial questiona o habitual pouco caso com o qual os ocidentais tratam as grandes obras de arte de outras culturas, e a noção relativa de defesa do patrimônio cultural "tal como é praticada por colecionadores, museus e casas de leilão".
A simples menção à possibilidade de potências ocidentais danificarem objetos de arte islâmica pode provocar reações indignadas. Quando uma enquete sobre a situação do patrimônio histórico, cultural e religioso do Iraque, após a Guerra do Golfo, foi capa da revista francesa Archéologia no. 274, Dezembro de 1991, com um longo artigo de páginas 10 a 21, no qual relatava-se o depoimento do guardião da mesquita de Al Zawaz, que atribuía a destruição de metade da cúpula deste edifício religioso a foguetes disparados por aviões franceses - justamente as fotografias da capa e de página inteira abrindo o texto - , assim como os de outras testemunhas que também responsabilizavam a aviação francesa pelo aniquilamento da mesquita de Al Maaqal, e que não era do conhecimento dos autores da matéria que o governo francês houvesse dado instruções particulares à sua aviação, para que o patrimônio cultural iraquiano fosse poupado, a polêmica estava criada, como foi demonstrado nas cartas dos leitores, objeto de uma "mise au point" no no. 277, Março de 1922, páginas 4 e 5, desta publicação. Segundo a revista, alguns missivistas não lhe perdoaram ter dado voz aos iraquianos, e uma leitora chegou a descartar sumariamente o relato das testemunhas locais sobre o bombardeio francês às mesquitas, alegando falta de provas.
Na longa série de encontros e desencontros com o Islã, que tentamos abordar através de uns poucos exemplos neste artigo, a capacidade do olhar ocidental de perceber o outro sem preconceitos parece ser utópica. Contudo, história não é destino, ela é possibilidade. No bojo da discussão do multiculturalismo, e das pressões político-econômico-sociais de sujeitos coletivos até então pouco considerados no cenário internacional, há probabilidades de construção de outras relações sociais com o mundo islâmico. Afinal, o real que conhecemos não é sinônimo nem de necessário nem de inevitável, mas é o que os homens podem, sabem ou querem fazer em um dado momento de sua história.

*Antropólogo e professor da Puc-Rio

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