Recato e depravação

Agruras e prazeres num paraíso tropical à mercê da Inquisição
Por Renato Grandelle


A chegada dos portugueses no Brasil: espanto
Autor da certidão de nascimento do Brasil, Pero Vaz de Caminha não se encantou apenas com os dotes da natureza, como o solo fértil ou as águas infinitas. O escrivão português dedicou algumas linhas à nudez das índias, que "de (...) muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha". Morria ali, no berço, qualquer chance de que a nova colônia lusitana fosse conhecida como uma terra de pudores. A liberdade sexual deu o tom de todo o século XVI, surpreendendo até o temido Tribunal da Santa Inquisição, segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Sexualidade (Nusex), da Universidade Estadual Paulista.
O grupo elabora uma historiografia da vida sexual do brasileiro, buscando na Colônia a origem de hábitos e preconceitos que permanecem até hoje. No século XVI, a falta de recato da nova colônia fez corar até um enviado da Igreja acostumado a ouvir barbaridades. Visitador da Inquisição no Nordeste em 1591, onde ficou por quatro anos, o padre Heitor Furtado de Mendoça veio à Colônia com a missão de vigiar os cristãos-novos, acusados de se aproveitarem da distância da Europa para abraçar novamente os ritos judaicos — um crime conhecido como apostasia. Entre as confissões coletadas, no entanto, destacaram-se aquelas envolvendo práticas sexuais condenadas pelo catolicismo.
— O século XVI foi marcado pela ambivalência sexual — avalia o psicólogo Paulo Rennes, coordenador do Nusex, co-autor dos estudos com as pesquisadoras Shirley Romera e Anne Caroline Scalia. — Ao mesmo tempo em que se fazia muito sexo, a Igreja aumentava o controle e as normas proibitivas. O povo queria satisfazer o desejo, e o fazia com muita intensidade, mas vivia com o medo de ser punido ao transgredir as regras católicas. A introjeção da culpa e do pecado levou muito tempo para se cristalizar, e nos anos 1500 este caminho ainda estava sendo trilhado. Principalmente no Brasil, onde, com a distância da metrópole, houve flexibilização das atitudes e do comportamento sexual muito maior do que a religião desejaria.

Fogueira não inibia poligamia
O explorador português, senhor de tantas terras, já não era estranho ao conceito de miscigenação. Uma inicial condenação a índias nuas passava rapidamente à tolerância. Conquistá-las era, inclusive, uma questão estratégica: unir-se a uma mulher garantia a fidelidade de toda a sua família — algo bem-vindo para o marido branco, entre tribos hostis.
A poligamia era popular entre os colonos — muitos já casados na metrópole. Os portugueses não escondiam uma certa admiração por seus inimigos tupinambás, que tinham até 14 mulheres. Quando cansavam de uma, a davam de presente para alguém. A tribo era, também, uma notória adepta da sodomia. Essa prática merecia condenação enfática da Igreja.
Foi, de fato, um século masculino. Os homens escolhiam com quem teriam relações. As índias usufruíam de situação semelhante, embora fossem dominadas pelo pretendente. As negras, escravizadas, não tinham opção.
As mulheres brancas, ainda em baixo contingente, cambaleavam entre manifestações de força e fragilidade. Diversas mandaram cegar as amantes do marido. Mas, de frente para o homem, apelavam a uma simpatia para evitar humilhações: durante o sexo, proferiam, em latim, as mesmas palavras com que os padres ofereciam a hóstia. Assim, segundo a crença, impediriam os maus-tratos.
O padre Heitor Furtado de Mendoça viajou pelos atuais estados de Bahia, Pernambuco e Paraíba e escreveu nove livros. Rennes e sua equipe do Nusex tiveram acesso a dois: Confissões de Pernambuco e Confissões da Bahia. Dos 183 depoimentos anotados pelo Visitador da Inquisição, 61 eram relacionados a crimes sexuais.
— Dom Heitor não sabia do clima sexual livre que grassava na colônia — destaca Rennes. — Foi uma surpresa para ele.
A Inquisição acumulara um farto histórico de cinzas e sangue. A caça aos judeus queimou na fogueira mais de duas mil pessoas, só nos últimos meses de 1481. A fúria avançou nas décadas seguintes para Portugal. Na última década do século XVI, a Inquisição aportou no Nordeste, que concentrava a maioria da população brasileira. A notícia da visita chegou muito antes do próprio visitador, o que fez muitos judeus migrarem para o sul.

Padre jesuíta Antônio Vieira, representante da ordem que teria resistido às tentações sexuais
Sem apóstatas à vista, o padre Heitor ocupou-se com outros pecados. E as chamadas heresias sexuais eram comuns. Além da sodomia, ouviu denúncias de bigamia, fornicação (sexo entre solteiros, adultério, relações com freiras ou animais) e masturbação. Falsas convicções eram punidas — a principal delas era considerar a vida sexual mais importante do que a devoção a Deus. A hierarquia, de acordo com a Igreja, punha os religiosos em primeiro lugar, seguidos pelos casados e, por último, pelos solteiros.
As condenações no Brasil, de forma geral, foram mais brandas do que na Europa, onde sodomitas eram enterrados vivos. No Brasil frequentemente tudo se resolvia com uma repreensão. Na Colônia, as heresias sexuais só foram consideradas crimes anos após o inquisidor deixar o Brasil.
— Dom Heitor não sabia como agir — explica Rennes. — Mas, nas visitações seguintes de inquisidores, houve penas mais severas. Durante a terceira visitação, entre 1721 e 1777, 139 pessoas foram mortas na fogueira.
As penas eram mais leves conforme o status do herege. Os "possuidores de títulos", como define a pesquisa de Rennes, eventualmente tinham seus castigos anulados. Já as "raças infectas" — negros, mulatos, índios, mouros e judeus — eram severamente punidas, tendo, inclusive, que usar publicamente vestes de linho típicas dos heréticos.
Até as freiras aproveitavam as vagas determinações inquisitoriais. Em seu primeiro século na colônia, muitas teriam permitido os avanços dos freiráticos, como eram conhecidos os devotos das religiosas. A relação sexual, porém, custava caro, como contam testemunhas. Além de presentes esporádicos, o amado teria de contribuir para a montagem de festas religiosas, inclusive peças no convento.
Padres de algumas ordens religiosas também renderam-se a índias e mulatas. De acordo com Rennes, só os jesuítas teriam resistido às tentações do Novo Mundo.
— Eles eram soldados de Cristo, muito rigorosos — descreve Rennes. — Os jesuítas viram como eram as práticas sexuais contrárias às normas da Igreja, e se tornaram os arautos da virtude católica.

A nudez das índias: da condenação à tolerância
Felipa de Souza, um símbolo da perseguição sexual
Acusada de sodomia, ela foi condenada a açoites e ao degredo perpétuo

Dom Heitor distribuiu penas leves aos pecadores, mas também foi o responsável por um dos castigos mais severos já aplicados por aqui. Uma de suas decisões deu a Felipa de Souza o título de mulher mais humilhada e castigada do Brasil Colônia.
Nascida em Tavira, Portugal, em 1556, Felipa chegou a Salvador, capital da Colônia, em data desconhecida. Viúva, casou-se na capitania com o pedreiro Francisco Pires. Sua vida trivial seria ignorada pelos registros históricos, não fosse a chegada de dom Heitor ao Brasil, em 1591.
No fim daquele ano, Paula de Siqueira, uma cristã de 40 anos, procurou dom Heitor para denunciar Felipa, então com 35 anos. Ela era acusada de ter um caderno proibido em casa. Nos escritos, encontrados pouco depois, Felipa contava detalhes apimentados de seu "ajuntamento carnal", como chamava a Igreja, com outras mulheres. 
Além de Paula, outras pessoas confessaram a dom Heitor terem praticado sodomia (definição que abarcava, além do sexo anal, a relação sexual de duas mulheres) com Felipa, que reunia cartas sobre as suas experiências.
Embora 29 mulheres já tivessem sido acusadas por crimes semelhantes, nenhuma teve punição tão severa como Felipa. O inquisidor a obrigou a usar uma veste de linho cru, uma espécie de uniforme dos heréticos, e a ouvir sua sentença de pé, na Igreja da Sé, segurando uma vela acesa. Felipa foi condenada ao degredo perpétuo. Antes, foi amarrada ao pelourinho, onde levou uma série de chicotadas. 
Paula, que aparece nos autos da Igreja como a principal acusadora de Felipa, foi uma de suas amantes. Teve também uma punição, embora mais leve — apenas seis dias de prisão, uma multa de 50 cruzados e algumas orações. Seu marido pode ter influenciado na escolha por um castigo mais brando: Paula era casada com o provedor da Fazenda, um importante funcionário da capitania. O paradeiro de Felipa após sua expulsão da Bahia é desconhecido. Ela se tornou símbolo do movimento gay.

Reprodução do livro da Inquisição

Fonte: AG. O Globo

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