Elmo proveniente da região de charente, na França, em ouro, ferro e coral, decorado no estilo celta antigo
No primeiro milênio antes de Cristo, os antigos celtas ocupavam uma grande parte da Europa como contemporâneos da Grécia e de Roma. Fora do âmbito clássico, viviam então quatro povos guerreiros, considerados bárbaros: os citas, nas estepes do Oriente; os germânicos, no Norte; os ibéricos; e os celtas, que reinavam, migravam e lutavam por toda a parte, nos Bálcãs, na região do médio Danúbio, na Boêmia, no norte da Itália e Gália até a Grã-Bretanha e Irlanda. Eles saquearam a Grécia, fundaram, na época helenista da Ásia Menor, o Reino da Galácia e chegaram até a Dinamarca, a Silésia e a Ucrânia. Os celtas surgiram na proto-história - época da qual a arqueologia e a lingüística são os únicos testemunhos.
Enquanto existiram como um povo, com reinos sempre em conflito entre si, os celtas criaram, durante cerca de mil anos, uma arte característica, que ocupa um lugar de honra na formação cultural do ocidente e que sobreviveu na Irlanda e Bretanha cristãs, justamente até a época em que se fixaram por escrito nestas duas ilhas suas lendas épicas - nos primeiras grandes obras da literatura européia narradas em língua vulgar.
Inclusive na Epopéia de Bran, surgida na Irlanda por volta do século IX d.C, numa visão mística do mundo, que Matthew Arnold chamou de magia da natureza. Talvez três mil anos antes da época do manuscrito dessa epopéia, e ainda na pré-história, se tenham estabelecido as bases da civilização européia, e os celtas foram um dos povos que contribuíram para formar definitivamente o seu caráter.
Cabeça de um chefe ou de um deus, em pedra, originária da República Tcheca
O caráter deste povo, marcado por contradições - amor excessivo tanto à luxuria como ao ascetismo, à exaltação e ao desespero; ausência da disciplina e do dom da organização; presença da coragem e do gosto pela disputa; e existência da crueldade, da superstição e da eloquência - é a antítese do ideal grego da moderação. Manifesta-se ainda no amor pelas belezas naturais, em lendas imbuídas de mistério e de imaginação, e num senso estético que prefere decoração e estilização à simples representação figurativa.
A arte de todos os povos antigos é na sua maioria religiosa, representando o sentimento do sagrado. E - ao menos em sua origem - está reservada a essa função. Os historiadores antigos ficavam perplexos com a total ausência da estatuária entre os celtas. Lucano (século I d.C.) relata que, em vez de esculpir estátuas, eles se contentavam em talhar grosseiramente troncos de árvores evitando de toda maneira dar-lhes formas humanas, e o autor explicou isso pela incapacidade artística dos bárbaros.
Detalhe do famoso caldeirão de prata encontrado em Gundestrup, na Dinamarca, representando o deus Cerunnos, com seus chifres. Foi feito no século II ou I a.C.
A filosofia religiosa dos celtas era mística. Toda a representação era realística - ou cópia da natureza (provavelmente a base da arte clássica) - e estranha à mentalidade e religião celtas. Segundo o historiador francês Albert Grenier, "não foi a arte que omitiu os deuses, foram os deuses que omitiram a arte".
A arte celta utiliza objetos do dia-a-dia, decorando-os com motivos geométricos, como, por exemplo, espirais, e, sobretudo, com animais e vegetais, símbolos da vida eterna transformados em decoração. São trepadeiras luxuriantes e brotos ainda recém-nascidos, monstros, seres híbridos, rostos humanos levados à caricatura, símbolos mágicos que se mesclam com a grandiosidade de composições lineares, imagens fugidias que deslizam do real para o irreal, ou combinações abstratas de marcada simetria, escondidas atrás de uma dissimetria aparente.
A forma se anima, seres vivos passam a se assemelhar a vegetais. Os rostos ficam geométricos, os temas abstratos, quase humanos. Para fugir à imitação da natureza, a arte celta utiliza uma fusão contínua de motivos. Uma transformação que mistura todos os temas - humanos, animais ou vegetais -, onde o que se faz é abstrato. Com raízes no período Hallstatt -, um burgo da Áustria onde se descobriu uma necrópole, com cerca de mil sepulturas pré-históricas, e que deu nome ao primeiro período da Idade do Ferro (cerca de 700 a 480 a.C.) -, esta forma fundamental da arte celta chega a seu ponto culminante na época de La Tène - localidade da atual Suíça - quando a civilização celta atingiu seu apogeu (500 a.C., aproximadamente), com a introdução da policromia na joalheria, nas armas e nos arreios de cavalos.
Pode-se dizer que pela primeira vez aparecia na Europa bárbara uma arte sofisticada, baseada na do mundo clássico e adotando até certo ponto seus critérios. Suas obras-primas demonstram um alto senso de forma, estrutura e linha; o uso de espaços vazios - que evita sobrecarregar a superfície com uma profusão de ornamentos - resulta num equilíbrio perfeitamente estético. Muitas destas obras possuem grande vitalidade dinâmica, mas não são irrequietas, pois o movimento vigoroso, muitas vezes evoluindo de um centro gerador, é sempre capturado com segurança num dado momento. Estes artesãos incorporaram elementos de fontes diversas, mas com tanto vigor e originalidade que criaram seu estilo próprio e individual. Durante os dois séculos de seu florescimento, uma certa unidade no tratamento estilizado de homens e animais é evidente: às vezes aristocrático, às vezes intensamente estranho, ou apenas levemente indicado na complexidade de sua concepção, pela presença persistente do ornamento grego e pela contraposição habilidosa de assimetria e simetria.
Um dos objetos mais significativos da vida diária era o caldeirão, utensílio que desempenhava, também, um papel importante no ritual religioso. Era no caldeirão que se preparava o hidromel e a cerveja servidos aos heróis. O caldeirão mágico do Rei Artur ainda aparece na literatura do século XII, para ser reintroduzido por Shakespeare no Macbeth. Alguns exemplares sobreviveram até os nossos dias. O mais famoso deles é o encontrado em uma turfeira perto de Gundestrup, na Dinamarca, em 1891. Ele data do período entre os séculos II e I a.C., e a presença de elementos orientais indica o médio Danúbio como local de origem.
O historiador grego Estrabão, nascido na Capadócia cerca de 58 a.C., relata como os címbrio presentearam "seu caldeirão mais sagrado" ao Imperador Augusto. Deve ter sido da manufatura celta, e de prata repuxada, tal como a daquele de Gundestrup. O caldeirão de Augusto tem 42 centímetros de altura e 69 centímetros de diâmetro, e pesa, aproximadamente, nove quilos. Cenas animadas e espetaculares estão representadas sobre suas paredes internas e externas: o deus chifrudo Cerunno e outras divindades, máscaras humanas, serpentes, animais naturais e fantásticos, uma procissão de guerreiros armados e cenas de rituais, como, por exemplo, um sacrifício humano.
Moedas gaulesas em ouro
Na Gália conquistada, a romanização fortemente organizada se impôs com tanta força que, setenta anos depois da era de Augusto, nada restou do antigo estilo celta numa arte que agora chamamos de galo-romana e que se encontra calcada na imitação da arte dos conquistadores. Mas algumas pequenas estatuetas e as numerosas lápides representando cenas do cotidiano - um ferreiro manejando o martelo, um alfaiate com seus tecidos, um fabricante de sabão e seus caldeirões, um navio cheio de barris sendo rebocado - conservam uma característica, um certo jeito artesanal que as distingue claramente das obras romanas da mesma época, com cenas de guerra ou de caça postas em arcos do triunfo ou sarcófagos fabricados em série.
Muitas das peças que chegaram até nós são executadas em ouro (raras vezes em prata) ou bronze, mas também existem boas peças em ferro, madeira e cerâmica. Os ornamentos em corais e esmalte e a cerâmica pintada mostram que os contrastes eram rebuscados e estimados, e os contrastes da contextura muitas vezes acentuados por pontilhado ou sombreamento.
O caráter místico da religião celta e o simbolismo da sua arte eram estranhos demais para os romanos. Mas a qualidade técnica dos artistas continuou a afirmar-se, mesmo depois da conquista, e o legado dos celtas constitui, hoje, um tesouro de extrema importância para a cultura universal.
Fonte: texto de Fred Madersbacher / Fotos: Reproduções
Lendas e Druidas
Quase tudo que existe a respeito da mitologia celta foi escrito pelos historiadores cristãos a partir de tradições orais - centenas de anos depois de estes mitos terem funcionado como parte integrante da vida dos celtas - ou, em alguns casos, colecionado por estudantes contemporâneos de folclore. É verdade que sobreviveu uma grande literatura, particularmente na Irlanda e no País de Gales. A deusa Dana, por exemplo, é evidentemente a Ísis egípcia e tornou-se conhecida por mais de trinta nomes, entre os quais Badb, Cailleach e Macha. Ela é também a Deusa-Mãe ou o princípio feminino, a Ártemis celta dos escritores clássicos, com toda a terra fértil e a criação animal sob seu controle. É a deusa da vida e da morte e uma grande matadora de homens. Seu parceiro, Dagda, revela-se um Hércules primitivo, representando o princípio masculino.
Os sacerdotes que organizavam o culto das divindades eram os druidas. Como não possuíam escrita, nenhuma de suas cresças nos chegou intacta; o que sabemos deles foi compilado de escritores clássicos como César, Diógenes, Laércio, Estrabão, Tácito e Plínio, o Velho. Outros dados podem ser colhidos de lendas ou histórias de santos e de indícios arqueológicos. Só um único templo druida nos foi descrito; seus santuários geralmente eram grutas ou bosques de carvalhos. Seu pitagorismo, mencionado pelos escritores clássicos, significa que acreditavam na reencarnação e em números sagrados, como o “três” documentado nas tríades de divindades. Os druidas devem ter exercido o papel de juízes entre os celtas indisciplinados, e regularmente celebravam sacrifícios humanos.
Em 43 d.C., o Imperador Cláudio conquistou a Inglaterra. Existem documentos referentes aos druidas desta época. O general romano Suetônio Paulino comandou no ano 61 uma expedição punitiva, e Tácito faz uma descrição viva deste encontro: "O exército inimigo colocado à margem do rio era formado por uma multidão compacta de guerreiros e de mulheres que gritavam imprecações, vestidas de preto como as Fúrias. Ao redor os druidas, as mãos elevadas ao céu, lançavam maldições terríveis, desconcertando nossos soldados com essa visão desusada".
Alguns dos reis celtas conseguiram, durante algum tempo, deter outra invasão, a dos germânicos. Entraram no reino das lendas: Vortigern, Uther Pendragon e outros. Mas a figura mais famosa e fascinante é sem dúvida a do Rei Artur, dos Cavaleiros da Távola Redonda. É bem conhecida a lenda sobre o aparecimento de ima bigorna atravessada por uma espada mágica, com uma inscrição prometendo o reino àquele que conseguisse retirá-la, e de como Artur foi o único a realizar a proeza. Artur conquistou um grande reino, aconselhado sabiamente por Merlin, o mago, e na sua capital, Camelot, a Távola Redonda tinha lugar para 150 heróis. A lenda descreve ainda as aventuras de seus cavaleiros, notadamente Sir Gawain, Sir Lancelot (que amava a bela rainha Guinevere, mulher de Artur), Sir Tristão e muitos outros. No fim se contam a amarga sorte de Merlin, que ficou aprisionado sob a terra, e a terrível batalha de Camlan, onde o velho rei caiu mortalmente ferido por seu compatriota Mordred. Mas qual é a verdade histórica, atrás desse ciclo de lendas? Não sabemos. A história dos reinos celtas dessa época é pouco conhecida.
Certos arqueólogos continuam na procura algo quixotesca de provas da existência do grande rei mitológico, mas até hoje nada de concreto encontraram. Mas nem tudo do ciclo arturiano é mera lenda. Sir Thomas Malory escreveu, em 1485, referindo-se a uma das mais famosas histórias de amor: "Contar das alegrias que havia entre a bela Isolda e Sir Tristão - não há língua para falar, nem coração para pensar, nem para escrever". É conhecido o trágico fim do triangulo amoroso entre Isolda, Tristão e o Rei Marco, da Cornualha. Numa encruzilhada de duas rodovias, distante cerca de quatro quilômetros de Fowey, na Cornualha, encontra-se um monólito alongado, irregularmente esculpido, colocado sobre um pedestal moderno. Numa de suas faces, há uma inscrição em latim: Hic iacit Drustans Cunomori filius - "Aqui jaz Drustans, filho de Cunomorus". Provoca uma estranha sensação pôr a mão na superfície carcomida desta pedra milenar, que é quase certamente a lápide de Tristão, pois Drustans é uma forma para seu nome, e o Rei Marco era chamado nas crônicas antigas de Marcus dictus Quonomorius.
Para ver mais imagens, acesse o álbum de fotos do Jornal A Relíquia.
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