Parte II
Por Roberto de Magalhães Veiga, Antropólogo e professor da Puc-Rio
Se formos examinar, com mais cuidado, as influências recíprocas entre a Cristandade e o Islã, os fatos podem ser bem mais interessantes do que as fantasias sensuais. Por exemplo, a exposição "De Bagdad à Ispahan", realizada no Petit Palais exibiu 67 manuscritos, excepcionalmente bem conservados, dos 10.000 islâmicos, do acervo de 80.000 manuscritos orientais do Instituto de Estudos Orientais de São Petersburgo. Esta mostra, que depois seguiu para Lugano, Londres e Nova Iorque, foi organizada pela Fundação ARCH (destinada a promover e ressaltar o valor do patrimônio cultural dos países do leste, criada pela filha de um dos maiores colecionadores do século XX, o barão Thyssen-Bornemisza), junto com autoridades e instituições russas e francesas.
Entre as raras obras-primas expostas, como a tradução árabe do livro de Euclides Elementos, com as figuras geométricas, copiado por Mas'ûd b. Muhamad b. Sa'îd, em 1188, gostaríamos de chamar a atenção para o Moraqqa' (álbum de colecionador - sempre eles!), com 98 fólios, feito no meio do século XVIII, para o mirzâ Mahdi (provavelmente o mirzâ Mohammad-Mahdi Khân Astarâbâdi, historiógrafo e secretário do soberano Nâder-Shâh), reunindo miniaturas mongois, do século XVI ao XVIII, persas da Escola de Ispahan, séculos XVII e XVIII, e modelos de caligrafias persas do século XVI, todas elas enquadradas por molduras decorativas.
Neste álbum destacaríamos o fólio 89a., O Sacrifício de Abraão, Escola de Ispahan (1684-5), que é uma cópia, feita por Mohammad-Zamân, de uma gravura flamenga, de acordo com o estilo "europeu" então em voga. Esta era uma requintada produção islâmica, utilizando a estética ocidental, para satisfazer sua elite. É completamente diferente do caso chinês, que, seguindo a orientação européia, quanto à forma e à decoração, copiava gravuras ocidentais nas porcelanas de exportação. As louças "Companhia das Índias" eram fabricadas utilizando-se como matéria prima o caulim da província de Kiangsi, mas escuro do que o de outras regiões, e que não era devidamente tratado, adquirindo o aspecto "pasta de arroz". Em geral, decoração e esmalte eram aplicados sobre a coberta, em fogo de mufla, e eram menos resistentes ao uso. (Brancante, Eldino da Fonseca. O Brasil e a Cerâmica Antiga. São Paulo, 1981, p. 334-336) Nesta porcelana, dificilmente marcada, para evidenciar sua inferioridade em relação à produzida para o mundo chinês, é que as gravuras ocidentais eram utilizadas. O contraste com o seu uso no Islã do século XVII não podia ser maior.
Para o leitor de hoje, dotado de uma visão esquemática sobre o que teria sido a Idade Média européia, e informado pelas imagens construídas no século XX sobre o Islã - com eventos de 11 de setembro de 2001, e suas conseqüências, ainda na memória - , certamente causa espécie que, na península ibérica da reconquista, Fernando III de Castela e Leão, o Santo, rei de 1217 a 1252, tenha tomado o título de "rei das três religiões", e que seu túmulo em Sevilha, por ele reconquistada em 1248, apresente inscrições trilingües. Aliás, no cotidiano, a comunicação lingüística era mais fácil do que poderíamos supor, pois os muçulmanos utilizavam um dialeto castelhano, o aljamiado - e não o árabe clássico da corte e dos eruditos - , e os judeus um castelhano hebraizado, o ladino. Da mesma maneira, para a sensibilidade moderna, é digno de nota que, com a tomada da Sicília - controlada pelos árabes por mais de dois séculos - pelas tropas de Robert de Hauteville, e a criação de um principado normando na ilha e no Sul da Itália, a Chancelaria de Palermo tornou oficial o uso simultâneo do latim, do árabe e do grego de Bizâncio. Se interesses políticos e econômicos ditaram as bases destas convivências relativamente tolerantes em plena Idade Média, por um tempo significativo, o que nos importa é a possibilidade do diálogo através das fronteiras religiosas, étnicas, e culturais, que resultou do pragmatismo de certos monarcas, como mais tarde o do Imperador Frederico II Hohenstaufen, que transformará uma cruzada em negociação diplomática.
Possivelmente, alguns dos diálogos mais complexos e profícuos com o Islã aconteceram em Toledo e Palermo, reconquistadas pelos cristãos em 1085. De acordo com a análise de Michaël Barry ("A influência dos contos árabes". In: Toledo, séculos XII-XIII: muçulmanos, cristãos e judeus: o saber e a tolerância. Org. Luis Cardaillac. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992 p. 208-212) estas duas conquistas assinalam "o momento capital na história do pensamento da Idade Média ocidental ou latina".
Numa época na qual as bibliotecas muçulmanas eram melhor sortidas do que as da Europa cristã, recuperar Toledo e Palermo significava, também, o acesso a importantes bibliotecas intactas, com as versões e comentários árabes de textos gregos há muito inacessíveis aos ocidentais, pois dificilmente Bizâncio acolheria clérigos latinos da Europa do Norte, que gradualmente perdiam o conhecimento do grego. O Ocidente apropriava-se da riqueza intelectual do mundo árabe, ao mesmo tempo em que lutava contra ele. A renovação do pensamento europeu deu-se nas regiões de fronteira com o Islã, as que foram anteriormente dominadas por ele, e agora, em poder das forças cristãs, para elas convergiam sábios de todo o continente, ávidos pelo imenso conhecimento produzido pelos muçulmanos. A partir da iniciativa de Bagdá, no século IX, na Casa da Sabedoria, os seguidores do Profeta esforçaram-se para organizar um corpus científico que englobasse a matemática grega, a astronomia indiana, a astrologia persa, a geografina alexandrina, relacionando tradições autônomas, quando não contraditórias. Tal foi o impacto da ciência dos árabes sobre os seus vencedores, que autores como Barry chegam o compará-lo ao exercido pela cultura grega sobre os romanos.
Na complexa e fecunda encruzilhada cultural na qual o mundo ibérico tornou-se ao longo dos séculos XII e XIII, uma das identidades mais interessantes que lá existiam, interagindo com cristãos latinos, muçulmanos e judeus foi a dos moçárabes, do árabe mosta'rab, isto é, arabizado. Eles eram os cristãos que permaneceram nos territórios ibéricos ocupados pelos Islã a partir do século VIII. Mantiveram sua fé religiosa, utilizando o rito visigótico, e quando Afonso VI reconquistou Toledo, na cidade existiam sete igrejas de culto cristão, as paróquias moçárabes. Eles distinguiam-se dos outros cristãos - os latinos - pela absorção dos referenciais culturais árabes. Falavam, liam e escreviam em árabe, tanto seus nomes castelhanos quanto o Evangelho, e suas roupas, móveis, jóias, prédios e estilos de decoração, e toda sua cultura material evidenciavam esta incorporação. Nesta época, os traços culturais ainda não eram lidos como sinais de filiação religiosa. Graças a estes interlocutores privilegiados, foi muito mais fácil a conversão e a incorporação de mouros à nova ordem, a Toledo cristã de Afonso VI. Foi neste ambiente de forte presença moçárabe que surgiu a chamada arte mudéjar. Não apenas estalactites de estuque e madeira entalhada segundo técnicas e decoração islâmica foram adotados por eles, e transmitidos aos outros cristãos, através de artesãos, pedreiros e construtores, de origem islâmica ou não, que dominavam estas técnicas. Por seu intermédio, a influência estética do Islã misturou-se às orientações românica e gótica, a ponto de, na decoração interna da Igreja latina de San Román, os santos cristãos estarem pintados com indumentária muçulmana.
Na Sicília também há combinações deste tipo. Em Palermo, o teto de madeira com pinturas decorativas da Capela Palatina é o principal trabalho de pintura fatímida de que dispomos hoje em dia. A cultura fatímida - dinastia bérbere que controlou o Egito (969-1171), África do norte (900-972), e a Sicília (909-1071) - contribuiu artisticamente para a devoção da Sicília normanda. Estas adoções de manifestações plásticas islâmicas talvez criem uma linguagem religiosa cristã-muçulmana bem interessante, pois, por exemplo, assim como o teto de estalactites (mukkarnas) é uma maneira de dissimular simbolicamente a matéria, a decoração dissolvendo abóbodas e cúpulas, que parecem flutuar etéreas, a repetição de um padrão, abstrato ou figurativo, é tornar visível uma parte do que em sua forma completa só existe no infinito, o padrão infinito remetendo-se à eternidade, ligando o objeto no qual é aplicado a uma ordem transcendente.
Continua na próxima edição.
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