Em Salvador, ou qualquer outra metrópole, as paisagens urbanas apresentam, aos olhos atentos, um redemoinho de tensões sociais. Com um pouco mais de sagacidade na observação, um painel de interferências artísticas ofuscam e contrabalançam percepções. Que podem te fazer refletir, refutar e reestruturar. É arte, afinal. Desconstrução. Colocaram, certa vez, uma cama no centro dessa cidade. Tinha um homem dormindo, despretensioso e relaxado. Estava em casa. Em volta, as pessoas se atropelavam na correria, apressados. E ele? Continuava a dormir. Bem que poderia ser só uma cama, mas foi lá locada para remeter significados... É, homens, mulheres e crianças se aconchegam nas urbes, muito embora, não relaxem na cama.
Cama (2002) é autoria do GIA – Grupo de Intervenção Ambiental. O coletivo é fruto da Escola de Belas Artes da UFBA e suas ações se baseiam em “aleatoriedade, humor e reflexões a respeito da vida cotidiana e suas singularidades”. A combinação desses prérequisitos resulta ações pensadas para sacudir a inércia da massa e soar que sim, existem descompassos sociais. Associações como as de Cama induzem na arquiteta, doutoranda em Urbanismo e professora de História da Arte da UFBA, a uruguaia Alejandra Muñoz, tanto os delírios das inter-relações de Salvador Dalí, como o desafio artístico de enxergar o além no comum. “Não cabe à arte apontar soluções para os problemas sociais, mas incitar a reflexão e mostrar as contradições e os valores de uma sociedade”, define.Fonte (1917), ready-mades de Duchamp |
Espera
Sobre artistas e expectativas, pelo menos nas ideias de Arthur Barrio, os esforços foram para que nada de “pré-fabricado” ou “arquitetônico” surtisse na sua 8° Bienal, bem pudera. Ele se mantinha na tensão da inércia à época da entrevista, convicto de que tudo o que pode fazer é situar o leitor numa dimensão externa ao espaço do evento. Português nato e vivente do Rio de Janeiro, Barrio tem energia antropofágica, que alarma desatinos sociais desde as décadas de 1960 e 1970, com
obras-referências, como Trouxas Ensanguentadas (1969) e Trabalho/Processo 4 dias 4 noites (1970). Barrio, artista dos “resíduos do mundo”, despreza os paralelismos – arte/política, moderno/vanguarda -, crê no gesto político da arte, só. “Penso que hoje essa confluência/des-confluência é um discurso-opinativo ultrapassado. Vivemos isso sim numa grande confusão ou caos, como queira, acho melhor assim”.
Há sempre um copo de mar para um homem navegar - A frase, colhida de Invenção do Orfeu, do poeta alagoano Jorge de Lima, pode ser uma quimera, um estímulo generoso à imaginação, um apelo à superação e um mote para criar. Tão por isso é o pré-texto inserido pelos curadores para uma das maiores coletâneas artísticas do mundo. A 29° Bienal Internacional de São Paulo, desde a concepção, mergulha profundamente nesse mar que movimenta significados. Foram dois que a atiraram lá, Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, recifense e mineiro, críticos, pesquisadores e curadores de arte.
As acepções do verso de Jorge Lima são tentações para Moacir e Agnaldo. “A frase oferece a capacidade de navegar, sonhar, produzir, ultrapassar e são muita as camadas, inclusive religiosas, mesmo num terreno limitado, que é o que os artistas fazem”, explica Agnaldo. Para um deleite pleno que começou em 21 de setembro e segue até 12 de novembro, dois co-curadores injetaram mais ar na Bienal: a venezuelana Rina Carvajal e a sul-africana Sarat Maharaj. Outros três ajudaram, tamanha a profundeza trilhada, são os correspondentes Fernando Alvim, Yuko Hasegawa e Chus Martinez.
O verso foi dado. Mas é a entrelinha proposta que liga as criações dos 160 artistas: uma plataforma discursiva que estimulará leituras sagazes da relação entre estética e política. Ou seja, um campo fértil para a arte. “Chamar atenção para a arte é política. Até a arte que se pretende neutra é política. O tema alerta quão complexo é a discussão. A arte fala do mundo e o denuncia, o que não significa uma abordagem explícita, mas fusão entre linguagens”, conta Agnaldo.
Com 59 anos, a Bienal abriu as portas no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, do Parque do Ibirapuera, com pintura, escultura, desenho, gravura, cinema, arquitetura e tudo mais de tecnológico e experimental que compreende a arte contemporânea, seus vídeos-arte e instalações.
Agnaldo até prefere definir o planejamento como “desenho político”. E olhem que os rabiscos têm cores baianas, percebido pelo nome dos espaços dedicados à “celebração do encontro, bem sagrado e profano”, como clama. São seis Terreiros, com focos de atuação distintos, mas sintonizados de modo a se comportarem como palanque poético. Entre os nomes, tem o “dito, não dito, interdito”, “lembrança e esquecimento”, “o outro, o mesmo”, “a pele do invisível” e “longe daqui, aqui mesmo eu sou a rua”.
Caetano Veloso usa Parangolé "Seja marginal seja herói", de Oiticica |
Arte?
O espaço público, tão usado por Barrio, também é explorado por graffitis, pichações e performances, como as do Coletivo Osso, de Salvador. No antes, as narrativas dos murais de Diego Rivera, no Palácio Nacional do México, as obras construtivistas de Tatlin, Rodchenko ou El Lissitzky, para a nova sociedade socialista; ou o Projeto de Arte Federal nos Estados Unidos, nos anos 1930, estão entre as obras indicadas por Alejandra Muñoz que tratam a relação entre arte e política em níveis mais explícitos. Ela impõe níveis por considerar que, panfletária ou discreta, toda arte é política, até mesmo as descompromissadas, “uma vez que a decisão de participar ou se omitir em qualquer processo cotidiano já é um ato político”Em 1960, certos panos coloridos e interligados – espécie de estandartes, capas ou bandeiras – curiosamente necessitavam de movimento para que a arte se tornasse visível. Eram os Parangolés, que Hélio Oiticica desenvolveu admirado pelo ritmo do samba. “O objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora”, descreveu Oiticica, à época.
Em 1970, Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meirelles, se apropriou das garrafas de Coca-Cola, inseriu a expressão “Yankees Go Home” e difundiu no mercado de consumo o maior símbolo norte-americano carregado de subversão. Na pesquisa Ondas do Corpo (1981), de Antonio Manuel, Meirelles comenta que o período não exigia o culto ao objeto, mas a provocação do corpo social. “A arte teria uma função social e teria mais meios de ser densamente consciente. E o papel da indústria é exatamente o contrário disso. Então as anotações sobre o projeto Inserções em Circuitos Ideológicos opunham justamente a arte à indústria”, narrou.
Política?
...Desarticulação da linguagem. Para o arquiteto e artista plástico baiano Almandrade, estando o artista seguro dessa meta, a arte pode atender mais à coletividade que temas políticos desfalecidos de estética criativa e comprometimento histórico. O experimentalismo de Oiticica, as esculturas de Ligia Clark ou o ready made de Michael Duchamp, pioneiros do conceito contemporâneo de instalação, permitiram, a esses artistas, a “decisão do que é arte ou não é, mas sob muita responsabilidade”, diz Almandrade. Dos modos de reutilização de referências históricas “ é que se podem alterar os sentidos e te colocar dentro de certo impacto”, opina.
Retrato de paisagem brasileira (1977) trazia, por exemplo, uma sequencia de cinco papéis fotográficos 18 x 24 cm, todos brancos, sustentado apenas pelo título. “A minha discussão inicial era uma relação com a linguagem visual, que tinha que ter uma legenda”. Mas, a obra foi além das paredes do MAM – BA, onde participava da exposição O sacrifício do sentido, e caiu em repercussão social. “Naquele momento de repressão, aqueles quadradinhos brancos chamavam atenção. Algo coisa que você não pode falar, entendeu? Eu não pensei diretamente isso, mas tinha a ver”, conta Almandrade, o autor.
Lógica do consumo, desenvolvimento sustentável, qualidade de vida, justiça social, políticas públicas e corrupção são abordagens que, segundo Alejandra, aguçam as criações desta era contemporânea. E, “esse eixo é o que espreme de modo mais abrangente a relação entre arte e política”, relata. Neles se confrontam valores artísticos, formas de relação com o público, noções de efemeridade, contextualização, conceitualismo e autoria. Entre os nós e desembaraços da linguagem, estética, conceito e história, para Muñoz, ainda é pertinente perguntar: “O que é arte hoje?”
Para ver mais imagens, acesse o álbum de fotos do Jornal A Relíquia.
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