Escombros da República

Por Vivian Oswald / Agência O Globo



Roubo de protótipo da bandeira nacional revela descaso com memória do positivismo

Protótipo da bandeira nacional, de Décio Villares

Nada mais revelador dos limites da memória brasileira do que o roubo da tela com o primeiro protótipo da bandeira nacional, de Décio Villares, do Templo da Humanidade, na Rua Benjamim Constant, na Glória. Foi nesta casa que os positivistas do Brasil, fiéis seguidores do filósofo francês Augusto Comte, não só pensaram os primeiros riscos do que viria a ser o estandarte máximo da República, como ajudaram a consolidar esta última, lutando contra o passado com ideias que pareciam estar à frente do seu tempo.
Foram estes os motivos que reuniram milhares de nomes importantes do país como Benjamin Constant, Miguel Lemos, Euclides da Cunha, marechal Cândido Rondon, Ivan Monteiro de Barros Lins, Roquette-Pinto, entre tantos outros, em torno de um conjunto de ideias que acabou servindo de base para a fundação de uma nova doutrina. Mas os anos vêm apagando os traços dos positivistas, que já se podem contar com os dedos da mão, e os seus feitos.
O furto de abril, do qual só se tomou conhecimento no mês passado, e o estado de abandono deste prédio monumental inspirado no Panteão de Paris confirmam as marcas do esquecimento. A falta de interesse pela igreja não é recente. Alguns de seus próprios adeptos mais fervorosos se afastaram quando os ideais humanistas e sociais passaram a ser impregnados por regras e restrições que faziam lembrar outras tantas religiões mais rígidas.
No mundo, a decadência teria começado em 1914, com a realidade trágica da guerra que assolava a Europa. "Como poderia prosperar o positivismo em suas aplicações políticas e sociais que têm em vista um regime pacífico-industrial?", questiona Ivan Lins (1904-1975) em seu livro "História do positivismo no Brasil", de 1964, para justificar a perda progressiva de fiéis da igreja.
Ele também fala da ascendência do ponto de vista material da sociedade. Lins era o que se chamava de "positivista não ortodoxo". Foi médico, professor, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Positivista convicto, apesar de suas críticas, preferiu ser velado na Igreja Positivista e não na ABL.
No Brasil, para piorar, somou-se o rigor do Apostolado Positivista.
"Me lembro que a tia Dorinha tinha horror àquilo! Dizia que não podia mais comer carne (...). Estava na esquina da Rua Benjamin Constant e comprou uma coxinha de galinha. Estava se deliciando com aquilo, quando vem subindo a rua o Teixeira Mendes. Ele usava uma batina preta, cinzenta. Era o luto eterno. Quando a mulher morria, eles tinham que usar o luto eterno! Ele vinha vindo e ela ficou tão perturbada que escondeu a coxinha atrás da saia. Depois que ele passou, atirou-a ao chão ", disse Fernando Luiz, filho de Otavio Carneiro, em depoimento à sobrinha e historiadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Maria Gabriela Carvalho.
Os positivistas não podiam pertencer às congregações de ensino oficial, ocupar cargos políticos, colaborar na imprensa, nem agremiar-se a associações científicas ou literárias. As restrições levaram muitos simpatizantes a esconder sua adesão. Foram desaparecendo pouco a pouco no Brasil.
- A parte religiosa caiu no ridículo. Isso é o que mata - diz a sociólga Sofia Beatriz Carneiro Lins, nascida em família de positivistas e filha de Ivan Lins.
Os avós de Sofia foram os primeiros a se casar no Templo da Humanidade no Brasil. As cerimônias lembravam as da Igreja Católica de certa forma. Os convites e participações eram feitos seguindo modelos da casa e usavam o calendário positivista, cujos meses têm nomes de grandes nomes da Humanidade. Em casa, as crianças liam os grandes clássicos positivistas.
- Era uma coleção tão bem escolhida. Se não existisse essa coisa, eu nunca na minha vida teria pensado em ler Aristóteles. Mesmo a Ilíada de Homero - afirma Fernando Luiz Carneiro.
Dos preceitos positivistas, encontram-se vestígios por toda a República moderna, embora muitos já não os reconheçam.
A expressão "ordem e progresso" da bandeira saiu da fórmula máxima de Comte, "o amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim", que ainda se vê escrito no alto da fachada do templo no Rio. O que poucos sabem é que, apesar de a primeira tela de que se tem notícia com a bandeira nacional ter sido roubada, os primeiros riscos a lápis que dariam forma às pinceladas de Villares ainda estão ali, como constatou O GLOBO. Não se sabe se os tracejos são do próprio pintor positivista ou de Teixeira Mendes, um de seus líderes máximos.
Dos panfletos de Mendes, um dos mais conhecidos e procurados pelos estudiosos é "A incorporação do proletariado na sociedade moderna", de 1908 - tema tão atual a meses da eleição presidencial. Ali já se discutiam benefícios aos trabalhadores que só seriam garantidos em lei quando Getúlio Vargas publicou, em 1939, o Decreto que criaria a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) no país. Em 1936, o folheto do Boletim do Centro Positivista debateria "a incorporação do proletariado escravo e as próximas eleições".
Do templo portentoso do final do século XIX, restaram paredes úmidas e parte de um acervo riquíssimo que foi adquirido em leilões pelos próprios membros da igreja no passado. É o caso da cama de Tiradentes, móveis ingleses e objetos que teriam pertencido a Augusto Comte. Estes, no entanto, sumiram sem deixar rastro.
Na sala onde funciona a pequena butique da igreja, chamam atenção as centenas de pacotes numerados empilhados sobre as prateleiras de madeira que se espalham do chão ao teto. Ali ainda estão guardados os milhares de panfletos (mais de 500 tipos diferentes) que costumavam ser lidos e distribuídos aos adeptos e aos simpatizantes da igreja durante os cultos e as conferências. Era assim que se espalhavam pelo país os ideais humanistas e o chamado Catecismo Positivista de Augusto Comte.
Os textos eram impressos no subsolo do prédio, onde ainda está a tipografia, hoje, coberta por plásticos negros, assim como os 16 mil livros da biblioteca como forma de proteção contra as chuvas.
Na mês passada, o governo do estado enviou uma equipe para escorar as paredes e o telhado da igreja. Falta agora dar início às reformas.

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