Por Roberto de Magalhães Veiga, Antropólogo e professor da Puc-Rio
Qual é a nossa real possibilidade de compreendermos aqueles que são distintos de nós? Se as pequenas diferenças, percebidas no cotidiano, em nossa própria sociedade, muitas vezes são tidas como problemáticas, e não como variações que podem enriquecer a todos nós, o que dizer de modelos sócio-culturais que parecem desafiar nossa capacidade de entendimento? As fronteiras simbólicas existem, sincrônica e diacronicamente, mas nunca foram obstáculos absolutos à interação social, às trocas constantes, ou intermitentes, entre grupos ou sociedades nada semelhantes.
Há várias possibilidades do exercício da plasticidade humana. Podemos conceber e colocar em prática os mais diversos modelos sociais, vivenciando-os por um lapso de tempo, depois transformando-os ou abandonando-os. A criatividade e a capacidade de expressá-la são patrimônio da espécie. Nossa maleabilidade também se evidencia nas inúmeras maneiras de olharmos para e lidarmos com o que não é similar. Em alguns casos, nossa postura é ambígua, um misto de atração e desconfiança, de violência e incorporação - a história de nossos museus, de como seus acervos foram sendo constituídos, é um belo exemplo desta duplicidade...
Ao enxergarmos o outro através de nossas lentes, há o perigo constante de deformações, valorizando-o ou invalidando-o acriticamente. Podemos ir da admiração ingênua à recusa infundada. Na leitura negativa, o que não é percebido, de imediato, como lógico, pode ser classificado, desde uma curiosidade epidérmica e condescendente, como exótico ou pitoresco, até o extremo da intolerância, como um perigo a ser destruído.
As representações que os europeus do século XVIII construíram sobre a China ilustram bem o primeiro tipo de equívoco. Para boa parte de seus autores, a China era um acervo de imagens altamente idealizadas (montado a partir de vários relatos, igualmente comprometidos, inclusive os dos missionários católicos lá radicados), com a utilidade instrumental de ser um contraste com o mundo europeu. A crítica, como exercício da razão, valia-se do contraponto chinês para evidenciar os absurdos que comprometiam as instituições européias. Uma verdadeira sinomania expressava-se na estética das chinoiseries e no elogio da ordem política e social do Império do Centro. A racionalidade de suas formas de organização, o mandarinato e o sistema de concursos legitimando o mérito individual, a tolerância e a sabedoria lá vigentes eram brandidos como uma peça de propaganda política contra o status quo europeu. Tanto a visão estética quanto a política eram equivocadas. Assim como os chineses fabricavam milhares de objetos com uma pátina artificialmente secular, junto com uma porcelana que eles consideravam de qualidade inferior, para o inexperiente mercado dos bárbaros ocidentais, eram inúmeras as mazelas do seu sistema social, tais como a corrupção, a intolerância, a opressão e muitas outras.
A embaixada de Lord Macartney ao Celeste Império, partindo da Inglaterra em setembro de 1792, com cinco navios e setecentos homens, pode ser vista como início de um processo distinto, informado por outros interesses, como a conquista do mercado consumidor chinês para seus produtos - inclusive e principalmente o ópio -, até para facilitar a manutenção da Índia sob o domínio inglês. Dos relatos de viagem dos membros da comitiva de Macartney (a missão inglesa chegou a Macao em junho de 1793, permanecendo em terra chinesa até março de 1794, só voltando a pisar em solo pátrio em setembro de 1794), alguns publicados pouco após o regresso do grupo, passando pelas guerras movidas por ingleses e franceses que, de 1840 a 1861, colocaram a derrotada e saqueada China à mercê dos europeus, até a verdadeira partilha e ocupação de seu território no final do século, o imaginário ocidental do século XIX, sobre o Império do Centro, incorrerá em outras distorções, desta vez estigmatizadoras, cujos efeitos serão sentidos até o final da primeira metade do século XX.
O Islã - um complexo cultural e religioso englobando diferentes etnias, línguas, formas de governo, manifestações artísticas, etc. - era um rival próximo demais, nos dois extremos do mundo mediterrâneo e em toda costa da África, até o final do século XV (o ano de 1492 marca o fim de uma era e o início de outra, com a queda de Granada e a chegada de Colombo à América), e depois do atual Marrocos à China, passando pelo Oceano Índico, para que, na mistura de disputas políticas, conquistas territoriais, curiosidade invejosa, competição econômica, e rancor religioso, os piores esteriótipos a seu respeito não fossem forjados. Da península ibérica da Reconquista à sagacidade diplomática e atividade guerreira bizantinas, das cruzadas ao cerco de Viena no último quartel do século XVII, da tomada de Ceuta pelos portugueses em 1415 à era dos impérios, um amplo e rico conjunto de informações sobre os seguidores do Profeta podia ser absorvido - e as negociações políticas do excomungado Imperador Frederico II Hohenstaufen, no século XIII, e as de Francisco I Valois, no século XVI, e, num plano mais modesto, a atividade intelectual de um dos maiores aventureiros do século XIX, Sir Richard Francis Burton, são interessantes exemplos de visões mais nuançadas do Islã -, mas não foram a sofisticação intelectual e o requinte estético vivenciados em tantas sociedades islâmicas que imprimiram uma marca indelével nas mentes européias em geral, e sim as fantasias sobre a luxúria do Harém e sobre a crueldade do Divã (Conselho de Ministros). Estas parecem ter sido constantes ao longo dos séculos, a despeito de diferentes conjunturas e processos históricos
Para o imaginário ocidental, a suposta carreira de Aimée Dubuc de Riverie (ou Dubucq de Rivery) realiza todos os seus sonhos sobre o harém. As circassianas, armênias, gregas, georgianas, russas, italianas, provençais, e outras européias eram tidas como as mais belas escravas destinadas à volúpia dos sultões, pachás e outros dignatários do mundo islâmico. Os pintores orientalistas explicitarão esta tendência à perfeição. Thomas Allom, Achille Boschi, Paul Leroy, Ange Tissier, Jean-Léon Gérôme, Eugène Guérard, e os grandes mestres, como Eugène Delacroix e Dominique Ingres, usarão os temas do harém e da favorita para celebrarem o poder de sedução daquelas mulheres, ou como um pretexto para nus femininos. Nesta estética, podemos imaginar um Le Bain turc com odaliscas negras? Ou, então, uma favorita negra influenciando as decisões de seu amo? No entanto, a África abastecia os mercados de escravos do Levante. Seriam suas mulheres menos desejáveis do que as outras, ou os preconceitos ocidentais só as admitiam como criadas, em cenas de harém, ou, com as bérberes, como tipos populares exóticos?
Aimée sintetiza o triunfo da ocidental subjugando dois sultões turcos. Se a sua trajetória é toda verdadeira, ou se é um amálgama das histórias de várias cativas ocidentais no harém do Grande Turco, ela cristalizou-se como a de uma mulher tão bem ou melhor sucedida do que Roxelane, a loura favorita russa de Solimão o Magnífico - o aliado de Francisco I contra Carlos V -, ou a grega Kosem, favorita de Ahmed I, e toda poderosa durante o período que vai do reinado de seu filho mais velho Mourad V até o do seu neto Mehmet IV.
Mlle. Dubuc de Riverie era uma créole da Martinica, assim como sua prima um pouco mais velha, e companheira de folguedos infantis, Mlle. Tascher de la Pagerie (mais conhecida, após seu primeiro casamento, como Rose de Beauharnais, e depois do segundo, como Joséphine, a Imperatriz dos franceses). Ambas tornaram-se mitos de feminilidade. Ainda adolescente, Aimée é aprisionada por piratas, nas proximidades das Baleares, e oferecida pelo Dey de Alger - ela não teve a mesma sorte da heroína de Rossini - ao sultão Abdoul Hamid. Sob o nome de Nakshidil será a favorita do final de seu reinado, e também a do sultão seguinte Selim III, atingindo, como mãe adotiva do Mahmoud II, o ápice de sua carreira no harém de Istambul. Ela fica como um símbolo, a ocidental que, nos bastidores, influencia o processo de modernização para reverter a decadência da Sublime Porta, agora ameaçada pela Áustria e pela Rússia, pontas-de-lança da Europa cristã, como outrora Veneza o fora.
O lendário triunfo de Aimée é tão agradável aos olhos ocidentais quanto as turqueries do século XVIII - das quais até Mozart valeu-se -, como o retrato de Mme. de Vergennes, vestida à oriental, pintado por Antoine de Favray, e, certamente, bem mais compreensível do que o esforço intelectual de Sir Richard Francis Burton traduzindo para o inglês As Mil e uma noites (e, também, levando a perplexidade dos vitorianos ao paroxismo, o Kama Sutra e o Ananga Ranga, dois clássicos do erotismo indiano).
Continua na próxima edição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário