O ‘Olho’ e o Mercado

Por Roberto de Magalhães Veiga (Antropólogo e professor da PUC-RIO)

Os integrantes do mercado de arte valem-se de uma expressão sucinta para dar conta do conhecimento necessário para o sucesso de suas intervenções neste contexto: ter um “olho”.
Este “olho” sintetiza o duplo processo de construção do conhecimento. Em primeiro lugar, o do sujeito deste conhecimento, capaz de “ler”, rápida e discretamente, objetos e interlocutores, definindo a identidade de ambos. No caso do objeto a sua autenticidade, o seu estado de conservação, o seu estilo, o seu preço justo de mercado, etc. Em relação aos parceiros, o seu interesse, a sua capacidade de intervenção no mercado – sua posição nas redes de cooperação que o estruturam, o seu conhecimento, e o seu caráter. Como a outra parte do díptico, o do objeto deste conhecimento, ou seja, a articulação dos critérios arbitrária e socialmente relevantes, dotados de significação pelo estabelecimento de um dado consenso histórico, portanto renegociados coletivamente.
Em um contexto no qual pessoas e objetos confundem-se, a montagem e a reprodução da identidade do sujeito do conhecimento depende de sua capacidade pública de fazer as escolhas de peças socialmente valorizadas por seus rivais/aliados no mercado. A autoridade - ou a reputação, produto de créditos acumulados - de sua fala explicita-se na sua capacidade de separar o autêntico do inautêntico, num amontoado heteróclito de bens. Através das mediações corretas, identidades pessoais e institucionais são criadas e prestigiadas publicamente. Os objetos constituem o código pelo qual estas identidades são viabilizadas ou desmontadas. A exposição dos acervos, públicos e/ou privados, é o ápice deste processo, e de todos os riscos a ele inerentes. Exibir é dar concretude, via peças, a características abstratas da personalidade daquele que as seleciona e possui, vale dizer, é exibir-se.
Ora, como esta linguagem, cujo domínio é o conhecimento do sujeito, e cujo investimento simbólico é a criação do objeto ímpar, original, insubstituível – portanto, uma dupla invenção – pode ser apreendida? O que significa ter um “olho”, em um contexto marcado pela ambiguidade e pela incerteza, como é o mercado de arte?
Carlo Guinzburg em Mitos, emblemas, sinais discute um modelo epistemológico baseado em um método interpretativo centrado em indícios, resíduos, dados marginais e involuntários, considerados reveladores, para chegar-se a uma realidade complexa, isto é, um conhecimento indiciário fundado em pequenos discernimentos. Esta forma de saber, designada paradigma semiótico ou indiciário, caracterizando-se por sutilezas não formalizáveis, dificilmente traduzíveis em nível verbal, fruto da concretude da experiência, sua força e seu limite, é o que o mercado de arte entende que seja o “olho clínico do conhecedor”.
Esta capacidade de separar o joio do trigo tem uma história bastante interessante. Entre 1874 e 1876, jogando com pseudônimos, Giovanni Morelli publicou uma série de artigos sobre pintura italiana, propondo um novo método para a atribuição de autoria de quadros antigos. Para Morelli era preciso abandonar a discussão dos traços mais óbvios, das referências tradicionais a respeito da produção pictórica de cada artista, e centrar o foco no exame de pormenores aparentemente negligenciáveis, de pequenos gestos inconscientes, no que fosse menos característico da escola a que o pintor pertencia. Era no menos vigiado que se devia buscar a individualidade do autor, pois no menos formal e consciente ele acabava “traindo-se”.
Guinzburg e outros, comentando os livros de Morelli, salientam os “cuidadosos registros das minúcias características que traem a presença de um determinado artista, como um criminoso é traído pelas suas impressões digitais”, e aproximam o “método indiciário de Morelli ao que era atribuído, quase nos mesmos anos, a Sherlock Holmes, pelo seu criador, Arthur Conan Doyle. O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria”.
Esta perspicácia é fundamental para várias práticas, além da do detetive. Os antecedentes do tipo de saber que o connoisseur possui são muitos. Caçadores – outra comparação cara aos colecionadores – decifram vestígios mínimos deixados pelos animais. A psicanálise também depende de um tipo de saber semelhante. Não é mero acaso que o criador de Sherlock Holmes fosse um médico, um profissional que produz seu diagnóstico baseado na interpretação de sintomas. Aliás, um dos primeiros autores a propor uma sistematização do conhecimento necessário que o connoisseur deveria ter, para adquirir obras autênticas, foi Giulio Mancini, médico do Papa Urbano VIII. Giulio foi um personagem e tanto, digno de figurar como um dos patronos do mercado de arte, em qualquer quadrante do mundo.
Este simpático senhor era um rematado patife. Fazendo valer ao máximo suas importantes conexões e a sua reputação ao que parece merecida, de médico com um “olho clínico” infalível, capaz de diagnósticos fulminantes, ele permitia-se viver com uma desenvoltura que poucos de seus contemporâneos ousariam ter na Roma papal do início do Barroco. Ateu, ele encorajava seus amigos a comer carne na Quaresma, mantinha um caso notório com uma mulher casada, cujos filhos criminosos ele salvou da justiça. Mas o melhor era a sua abordagem para conseguir as obras de arte de seus pacientes. Visitando seus destacados doentes – o melhor da sociedade romana – ele sugeria, nos momentos críticos, que algumas de suas pinturas seriam um presente muito adequado. Poucos recusavam-se a atender a tão amável solicitação. E assim, para seu deleite ou para negociar, ele ia aumentando seu acervo.
Para a História da Arte, Giulio Mancini fica como o autor de Algumas considerações referentes à pintura como deleite de um gentil-homem nobre e como introdução ao que se deve dizer, no qual ensina aos amadores-diletantes, que frequentavam as exposições de quadros antigos e modernos, realizadas todos os anos no Pantheon, no dia 19 de março, a comprar com discernimento, de acordo com o tamanho de cada bolso – o livro não é apenas para os ricos e aristocratas -, a pendurar e até a conservar os quadros.
Como ninguém escolhe ancestrais e precursores, Nemrod – grande caçador face ao eterno e responsável pela Torre de Babel, portanto duplamente qualificado para o mercado de arte -, Giulio Mancini – insigne médico e perigoso marchand-amateur -, Sherlock Holmes, os marinheiros – que interpretavam a posição das estrelas, o voo das aves, as diferentes cores do mar e das algas -, os comerciantes de cavalo – que, com um golpe de vista, descobrem os futuros vencedores -, e outros tantos são aqueles que compartilham com o connoisseur as formas de conhecimento indiciário, “mais ricas do que qualquer codificação escrita”, fundada em “sutilezas certamente não-formalizáveis, frequentemente nem sequer traduzíveis em nível verbal”, conforme Carlo Guinzburg, e que são fundamentais para os compradores e vendedores profissionais do mercado de arte.
Neste contexto de não generalização e incerteza sobre o autêntico e o inautêntico, voltado para a circulação de objetos únicos, raros, de singularidade inimitável, o sujeito do conhecimento é aquele que domina esta lógica do sensível, articulando o maior número possível de pormenores aparentemente negligenciáveis, para chegar à identidade “real” do objeto. Seu “olho” é um bisturi rápido e preciso, discriminando os objetos autênticos em um mundo ambíguo e opaco.
Em um modelo de interpretação eminentemente qualitativo, o indivíduo singulariza-se ao reconhecer o objeto único, frente a seus aliados e rivais. O domínio desta lógica do sensível, avessa a codificações escritas, dependente da concretude de experiências, faz de cada detentor do conhecimento um arquivo de saber acumulado, que desaparece, em parte, com ele.

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