Arte e vida nacional

Por Ferreira Gullar

Nós, brasileiros, não inventamos o romance, a poesia, o teatro, a pintura, a arquitetura, a música. Essas formas de expressão chegaram aqui trazidas, inicialmente, pelos portugueses, mesclando-se mais tarde com elementos indígenas e negros. Mas as formas básicas, sobretudo no que se refere à literatura e às artes plásticas, permaneceram ligadas às fontes européias. Quando se fala, portanto, em literatura brasileira, teatro brasileiro, pintura e arquitetura brasileiras, não se pretende que tais formas sejam originalmente nossas: pretende-se apenas que elas sejam manifestações particulares da literatura ocidental, do teatro, da pintura, da arquitetura ocidentais. Isso não significa que tais manifestações sejam meras cópias da arte européia ou norte-americana. Daí a dificuldade de se situar a questão com a necessária clareza. Ou se afirma que a arte é um fenômeno universal, e que por isso não tem sentido falar-se em arte brasileira ou arte nacional, ou se defende uma arte brasileira que não se sabe ao certo o que é. Há ainda uma terceira posição que adota uma definição ideológica da arte e que termina por negar quase tudo o que foi feito até aqui.
Creio que se deve partir do princípio de que a arte é um fenômeno excessivamente complexo para que a submetamos a definições esquemáticas. Esse é o primeiro ponto: o romance, a peça de teatro, o poema devem, antes de mais nada, possuir as qualidades indispensáveis a uma obra de arte. Sem isto, tanto faz que os qualifiquemos ou deixemos de qualificar de brasileiros. Certamente, caberia alegar aqui que a própria definição de obra de arte é coisa discutível, e eu admito. Mas, todos aqueles que têm alguma experiência da coisa literária e artística distinguirão entre um trabalho esquemático e ufanista ou exótico e uma obra realmente elaborada e criadora. Não se veja em minhas palavras o propósito de minar a defesa de uma arte nossa relativamente autóctone. Pelo contrário, essa é a única maneira real de lutar por ela: não só porque não tem sentido defender a mediocridade e a falsificação como porque a posição contrária abre flanco às críticas daqueles que defendem o cosmopolitismo e a alienação.
A defesa de uma arte legitimamente nossa não implica a negação radical do que foi feito antes nem tampouco sua aceitação complacente. O mais importante, creio, é procurar entender a dialética dessa assimilação de formas estrangeiras que a transforma em veículo de expressão nosso. Tal compreensão não pode ignorar as condições históricas em que essa assimilação veio se processando, e o melhor caminho para esse entendimento é evitar as simplificações. Antigamente, a tendência era considerar os nossos românticos, realistas, parnasianos e simbolistas como representantes desses movimentos e estudá-los segundo as definições européias de tais movimentos. Não se levava em devida conta as diferenças do meio cultural e as distorções sofridas. Ou tais distorções eram vistas como mera deficiência e prova de inferioridade. Ignorava-se que essas distorções eram necessárias e que, através delas, se manifestava o elemento novo, próprio, introduzido nas formas e no conteúdo importado. Hoje já se tem consciência disso. Não obstante, há uma tendência a exagerar a disparidade de função entre essas formas e idéias na Europa e aqui. Então, se apresenta a adoção delas pelos escritores brasileiros do passado como uma espécie de comédia ou farsa. Isso não tem sentido.
Deve-se entender que para os intelectuais brasileiros do século XIX não havia outro caminho senão importar as idéias e formas da Europa. Do mesmo modo que, para o Brasil de então, progredir era integrar-se como dependente no sistema capitalista, para os intelectuais, evoluir culturalmente era assimilar a cultura européia. Certamente essa cultura era a cultura do colonizador e a sua ideologia visava justificar a dominação. No entanto, não se deve ignorar que essa mesma cultura européia não era sem contradições e que também dentro dela gerava-se uma visão crítica. Além do mais, o transplante de idéias de um contexto social para outro tem conseqüências imprevisíveis. É o caso de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Outro exemplo: Augusto dos Anjos.
Nova opção. A literatura foi, até o século XVIII europeu, uma atividade de elite, de letrados para letrados. É com a Revolução Industrial que se inicia a transformação radical da sociedade, provocando o crescimento acelerado das cidades, o êxodo rural, o surgimento da sociedade de massas. A alfabetização e formas rudimentares da cultura urbana se popularizam. O romance, inicialmente em forma de folhetim nos jornais, é fruto dessa transformação. A poesia desce do Parnaso e habita agora os boulevards. As contradições sociais se radicalizam com a presença crescente da classe operária e surge uma nova visão crítica e uma nova proposta de transformação social. Mas é somente no século XX, com a Revolução de 1917, que a crise da sociedade burguesa gera o seu contrário: a primeira sociedade socialista. E é na medida em que o campo socialista se amplia e fortalece que se cria uma opção nova para os países do mundo periférico: se, no século XIX, o progresso era integrar-se no sistema capitalista, já agora o socialismo surge como um caminho possível para os países dependentes. Também no plano intelectual, a opção se oferece: adotar as idéias burguesas, assimilar sua visão de mundo não é mais o caminho obrigatório, muito pelo contrário: a visão burguesa perdeu sua universalidade e, por isso, já não consegue oferecer para os homens a solução dos problemas fundamentais, nem no plano econômico, nem político, nem cultural.
A nova visão crítica da sociedade nos permite compreender melhor a realidade nacional. Já não a vemos hoje como a viram os ufanistas nem a limitamos a seus aspectos pitorescos ou anedóticos como o fizeram os modernistas de 22. As relações concretas entre as classes, os problemas sociais com suas conseqüências e suas causas é que hoje conformam a imagem do país. É dessa visão que se alimenta uma parte considerável da literatura e da arte brasileira atual. Creio mesmo que esse é o caminho mais justo e mais fecundo para a atividade criadora. Não obstante, tanto é possível fazer, a partir dessa visão crítica, boa arte como má arte, boa literatura como má literatura. A visão teórica, ainda que correta, não é uma chave mágica para a solução dos problemas que a criação artística coloca. Muitas vezes até pode semelhante visão tolher o vôo imaginativo e limitar a capacidade de indagação do artista, tanto no que se refere à sua temática quanto à sua linguagem. A arte não é mera ilustração de teses nem a mera denúncia de injustiças sociais. Ela pode envolver tudo isso mas só alcançará a condição de obra de arte se transcender os propósitos da ilustração e da denúncia para fundar a verdade específica da obra de arte: e a verdade da arte é a que comove. Mas a comoção, no nível artístico, não se confunde com o sentimentalismo superficial e meramente catártico que só serve para ocultar o verdadeiro drama do indivíduo e da sociedade.

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