Como é o seu processo criador?

Por João Ubaldo Ribeiro

No começo da carreira, não; no começo, é um triunfo. Para quem nunca foi ouvido nem cheirado, dar uma entrevista, em que opiniões e opiniões magníficas verão a luz pela primeira vez, é a própria glória. Tem gente que fica tão assanhada que faz as próprias perguntas e responde sofregamente. No dia seguinte, o jornal nunca dá a entrevista com o devido destaque, mesmo que a chame na primeira página. Pedem-se opiniões aos amigos, enche-se a paciência do cônjuge, fazem-se queixas de "distorções", observa-se que devia haver fotos melhores do que as que saíram, lê-se a entrevista o dia inteiro, telefona-se para ouvir mais repercussões e, enfim, está publicada a nunca inteiramente satisfatória, mas consagradora entrevista.
À medida que o tempo vai passando, a entrevista também vai mudando e chega o dia em que ela, definitivamente, se torna uma chatice inominável, quase negociável pelas penas do inferno. Muitas vezes a culpa é tanto do mau humor do entrevistado quanto do despreparo do entrevistador, que freqüentemente não é preparado para a missão, ou não faz o dever de casa. E, afinal, a entrevista se torna uma coisa tão chata quanto qualquer outra coisa muito repetida. Principalmente por isto mesmo, porque é repetida. Só quem deu muitas entrevistas é quem sabe como as perguntas são repetidas. Tenho a impressão de que ninguém nota e eu já tentei gravar respostas antecipadas, escrevê-las minuciosamente - tudo o que se possa imaginar. Não adianta, as mesmas perguntas vêm. No caso dos correspondentes estrangeiros que estão aqui fazendo uma visitinha, a principal pergunta repetida é o pedido para que expliquemos o Brasil ao leitor estrangeiro em trinta segundos. Esta é fácil, basta pedir que ele explique o país dele a um analfabeto brasileiro em um minuto. Claro, os leitores dele não são analfabetos, mas, em matéria de Brasil, são e ele sabe que são, de maneira que desiste com facilidade e passa a perguntar sobre índios, Amazônia e a inata sensualidade brasileira. Ainda a mesma chatice, mas vai-se inventando aqui e ali, enxertando uma piadinha ali e acolá, e está pronta a entrevista.
No caso dos brasileiros, a não ser quando a entrevista não é genérica, a pergunta inevitável é sobre o processo criador. Nunca fiz uma idéia muito clara do que querem dizer com "processo criador" e acho um nome tremendamente pomposo para designar o ato de sentar o traseiro numa cadeira e espremer o juízo para tirar ideias. Conheço escritores que levam a sério esse negócio de processo criador e até criaram rotinas para eles - cadernos especiais, rituais, incenso, música new age e todo tipo de traquitana concebível - e exibem esse material como parte integrante da criação dos maravilhosos universos mentais que brotam de suas cabeças. Eu não. Eu acho que não tenho processo criador, ou, se tenho, flagrá-lo me foi negado, como a visão de Deus ao homem. E digo isso, com perfeita honestidade, a quem me faz a pergunta.
Mas a resposta nunca satisfaz. Como não tenho processo criador, claro que tenho processo criador. A pressão é tanta para que acredite nele que às vezes me surpreendo acreditando, embora a sensação dure pouco. Aquela epifania que nos vem quando lambemos uma colher de leite condensado? As recordações pungentes que me tornam ao peito, ao ouvir o bolero ao som do qual aquela moça (hoje, querendo os fados, um bagulho pior do que eu) da juventude dos bailes nunca quis dançar comigo? A lembrança de que, se não escrever, não me pagam e, portanto, mandam a prudência e a Segurança Alimentar que eu escreva? A outrora invencível seleção canarinho entrando em campo?
Não, não, não dá para convencer. Meu processo criador, se existe, é uma vergonha, porque se trata de pouco mais que espremer miolos mesmo. Só uma coisa é que me leva a não descrer completamente dele: é que não adianta forçar. Se tentarem forçar, ele não pega nem no tombo do boteco inteiro mobilizado. Todo santo dia, em algum lugar, alguém me aborda e me conta uma longa história para que eu a escreva. Todo santo dia, volta e meia várias vezes. E minha profissão não é das mais solicitadas nessa área, imagino a de diretores de teatro e TV. É horrível, a gente sentada ali como que amarrada pelas palavras inflamadas que nos dirigem, ouvindo um camarada desfiar seus ideais para que entremos neles e os interpretemos com a fidelidade com que ele crê transmiti-lo, como se fosse possível transferir uma sensibilidade para outra.
Perguntará você por que estou falando nisso com tanto interesse. Explico. Porque interessa a você mais do que a mim. Vejo agora nos jornais o debate sobre a imposição de temas ou perspectivas ou vezos, ou que outro nome se ache, para a produção de filmes, shows e peças patrocinados. É isso mesmo, não? Agora vamos ter burocratas verificando a adequação de projetos aos programas de governo, ou pelo menos à sua política geral, é isso? Agora, quem quiser fazer um filme ou espetáculo incentivado vai ter que preencher um formulário de processo criativo, com todos os itens necessários à boa obra de arte?
Claro, isso é brincadeira, só pode ser brincadeira. Lembro um amigo etíope que eu tinha (espero ainda ter, em algum lugar do mundo onde ele esteja), que me contava que, no tempo de Haile Selassié, tudo o que fosse impresso na Etiópia tinha que ter permissão do governo, inclusive cartões de visita e convites de casamento. Vai voltar aquele certificado de censura que todo filme era obrigado a ostentar antigamente? Não, é brincadeira, só pode ser brincadeira.

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