Duchamp e o Dadá

Por Affonso Romano de Sant'Anna

Certa vez estive em Paris, vendo no Beaubourg uma exposição retrospectiva sobre o dadaísmo – aquele movimento que em torno de 1916 decretou que a arte tinha morrido e que, portanto, tudo era arte. Pois estava eu pensando em fazer uma crônica descrevendo a exposição e ressaltando uma coisa que me parece crucial: que havia um contra-senso alarmante naquela exposição. Ou seja: o movimento que propunha o fim da arte, o fim da aura artística estava, uma vez mais, não apenas sendo santificado, institucionalizado, mas, ainda mais grave: não havia nenhuma reavaliação critica mais de noventa anos depois. A história da arte estava ali congelada, paralisada; é como se não se tivesse avançado historicamente um dia, uma hora, um segundo sequer em relação ao que foi proposto.
Outro dia, vocês e eu acabamos de ler nos jornais: “Francês martela obra de Duchamp e é preso. Um francês de 76 anos foi detido no Centro George Pompidou, em Paris, após atacar, com um martelo, a obra Fonte, um urinol de porcelana de 1913, do artista plástico Marcel Duchamp. A peça ficou levemente danificada. Em 1993, o mesmo homem havia urinado na obra, quando estava exposta em Nimes, sul da França. Desta vez, ele alegou que sua ação foi uma performance de arte, que teria agradado artistas do dadaísmo, movimento ao qual a exposição no Pompidou é dedicada. A Fonte é estimada em US$ 3,6 milhões”.
Um leitor que conhece minhas teses no livro Desconstruir Duchamp (2003, Vieira & Lent, 204 págs.) me pergunta: e agora? E sigo explicando: a notícia não fala o nome do artista que deu as marteladas, mas sei quem é: trata-se de Pierre Pinoncelli, e aquela exposição, de 1993, em Nimes chamava-se A embriaguês do real – titulo ótimo para ser analisado com mais calma. Na ocasião, a “intervenção” desse artista fez com que o Ministro da Justiça da França participasse do processo no qual Pinoncelli foi acusado de danificar um bem do estado. Pinoncelli, já em 1993, contra-argumentava que havia feito apenas um gesto artístico, “apropriando-se” da “apropriação” de Duchamp: urinar naquela obra de arte transformava-a de novo num urinol, que artisticamente deixava de ser de Duchamp para ser, líquida e certa, uma obra dele – Pinoncelli.
Agora, com essas marteladas, ele voltou à sua “obra-prima”. Alguns analistas se indagam, aliás, porque certos artistas não conseguem superar o trauma duchampiano e continuam como perus bêbados em torno daquele urinol. Enquanto alguns dadaístas vivos gostaram do gesto de Pinoncelli, o sistema ficou indignado dizendo que a obra vale US$ 3,6 milhões. Aí, mais um paradoxo: aquele urinol pode ser comprado por aí, sei lá, talvez não chegue a mil reais. Como é que os curadores podem dizer que vale US$ 3,6 milhões? Por causa da assinatura? Bobagem. O próprio Duchamp andou botando seu nome em quadros alheios. Acresce outro fato: quando o urinol que Duchamp expôs em Nova York, em 1917, virou notícia e ícone-tótem-e-tabu, Duchamp passou espertamente a comprar vários urinóis e a vendê-los para museus. Caía assim numa contradição braba: o homem que decretara o fim da arte batalhava por estar nos museus.
Já passou da hora de se fazer uma revisão crítica de Duchamp. Não se trata de ser contra ou a favor. Há que analisar. Um bom trabalho escolar é comparar essa tentativa de destruição com aquela outra do italiano que deu umas marteladas na Pietà de Michelangelo. E qual a diferença entre urinar e dar marteladas para cultuar e uma autêntica “desconstrução!” teórica? Enfim, há inúmeras coisas a serem estudadas, reveladas sobre os dadaístas. Anoto, percorrendo dezenas de trabalhos, uma delas: os trabalhos de Picabia são mais instigantes que os de Duchamp, mas as pessoas continuam ajoelhadas diante do urinol.
Outra coisa: Picabia, que participava da pregação niilista de dadá, tem uma série de álbuns onde colecionou narcisisticamente tudo o que saiu sobre dadá. O álbum nº 6 tem 605 páginas. Pensemos sobre esse paradoxo museológico.
Em outros textos meus, analisei o oculto caráter autoritário e até messiânico do dadaísmo. Na verdade, o mais radical dos dadaístas, não foi Duchamp, e sim Arthur Cravan, que, tendo decretado que sua vida é que era sua obra de arte, desapareceu nas águas das Caraíbas. Isto depois de ter feito coisas realmente originais, pois sendo campeão europeu de boxe, desafiou, com seus 105 kg, o campeão mundial, Jack Johnson, com seus 110 kg, para uma luta, que está registrada em fotos nessa exposição.
Fora isto, que tal analisar essa frase de Paul Dermée, um dos dadaístas: “Dadá mata Deus! Dadá mata tudo. Dadá anti-tabu!”. Que tal começar a analisar o dadaísmo também como um tabu que tem quase cem anos na história e na deshistória da arte?

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