Por Ricardo kimaid
Muitos me consideram saudosista, como se isso fosse algum demérito. Será que lembrar dos bons momentos da vida, que ficaram estampados em sua memória, é um defeito? Se assim for, me rendo, pois assim sou. Sinto-me um dos privilegiados que viveram intensamente os Anos Dourados, entre os anos 60 e 90, antes de se instalar a Era da Mediocridade, que se alastrou pelo mundo até os dias atuais. Minha gente, essas novas gerações poucas coisas boas terão para se lembrar. Eles não terão o prazer de saber o que era uma "paquera", dançar cheek-to-cheek, namorar no portão, andar de mãos dadas; careta, não? Pois é; hoje os namorados só vão saber dos respectivos nomes após dormirem juntos. Não sabem qual é o sabor de uma conquista, não conhecem o que seja poesia, romantismo, o que significa ser um gentleman, um cavalheiro.
Bem, esse prólogo tem a ver com o meu saudosismo, para fazer uma abordagem de como era o nosso mercado de arte, seus profissionais e seus admiradores. Em um bate- papo descontraído, eu e meus dois irmãos, Toninho e Nelson, nos reportandoà época da Galeria Rachid, inaugurada no Edifício Avenida Central, em 1961, no mesmo ano da inauguração do prédio que levava o nome da incorporadora, Regina Feigl. Meu pai teve ali duas galerias; uma modernista, e outra clássica e acadêmica, e logo a seguir, no subsolo, uma vitrine com 25 metros de comprimento. Nosso assunto discorreu num almoço descontraído, e lembrávamo-nos da postura dos apreciadores, que paravam em frente a determinadas obras, analisando demoradamente e se emocionando com o motivo ali exposto, e a qualidade da pintura. Muitos voltavam para rever, independente de ter ou não condições financeiras para adquirir essa ou aquela obra que tanto o tocou, porém, contentando-se apenas em apreciar. Muitos outros, contagiados pela simpatia de meu pai, Rachid, passaram de simples observadores a colecionadores, e fizeram dali um ponto de convergência cultural, com visitas diárias à galeria. Lembrávamo-nos de um deles, por exemplo, Júlio Bozzano, na época corretor de títulos de valores, sempre com uma pastinha debaixo do braço, que profetizava que um dia teria um banco. Tal profecia de fato aconteceu, e, de apreciador confesso, tornou-se um grande colecionador.
Histórias como estas, tenho dezenas para contar, mas o assunto mais importante que temperava nosso bate-papo, era o prazer demonstrado na face daquelas pessoas, que visitavam e degustavam com os olhos aqueles quadros que lhes transmitiam prazer, emoção e despertava a ambição de possuí-los.
Sim, meus amigos, as artes falavam por si. O quadro, a escultura, o desenho, e o que fosse chamado de obra de arte, não precisavam de legendas para se fazer entender, se fazer apreciar, se fazer contagiar e emocionar. Nada parecido com hoje, certo?
A Galeria Rachid não era somente um ponto de encontro com os apreciadores da nobre arte; era também o local que reunia os grandes artistas plásticos; grandes sim, pois Rachid só expunha obras de artistas que tivessem no mínimo medalha de prata, ou hour concour no Salão Nacional de Belas Artes. Vale lembrar que anualmente os artistas participavam desses salões, concorrendo às premiações, desde as medalhas de ouro, prata e bronze e prêmio de aquisição no MNBA, aos prêmios de viagem ao estrangeiro, entre tantas outras menções que enriqueceram seus currículos e os diferenciavam no ranking dos artistas.
Os críticos de arte que regulavam e participavam dos júris eram pessoas eméritas e cultas, portadoras de erudição que os qualificavam para desenhar as tendências do mercado. Eles se foram e não deixaram substitutos à altura, perdendo-se assim essas figuras tão importantes e reguladora do mercado de arte. Deu no que deu: hoje, o que promove artistas é um marketing composto por pessoas desqualificadas para ditar rumos e tendências, mas o fazem indiscriminadamente, sem a menor erudição e cultura para o que se propõem em fazer.
Se eu, por acaso tiver mais algumas décadas de vida, certamente deletaria de minha memória essa coisa horrorosa em que se tornou o mercado de arte; é business da pior qualidade a determinar a atual indigência cultural, através uma mídia cruel, que extingue qualquer resquício do que foram esses bons tempos.
Existiram sim, movimentos modernistas, como o Grupo Santo Helena, em São Paulo e o Núcleo Bernardelli aqui no Rio, entre outros, cujas tendências, cada qual revelando a sua, perfilariam os grandes ícones, alguns hoje muito conhecidos na pintura brasileira. Há de se ressaltar que muitos que se revelaram na época, estejam esquecidos, graças a um sistema que só privilegia demandas lucrativas. O espaço para conter tantas histórias não caberiam nessa revista, mas espero ter tido a capacidade de sintetizar, com essas memórias, como transcorreu esse período, e o quanto foi prazeroso vivê-lo.
Ricardo Kimaid
tel 2273-3398
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