Fortaleza de Rumeli vista do Bósforo |
A mais notável fronteira entre Oriente e Ocidente está em Istambul. Metrópole da moderna Turquia, a antiga Constantinopla é uma encruzilhada cultural onde se misturam traços de três poderosos impérios: o Romano, o Bizantino e o Otomano. A Ponte Sultão Muhamed Fatih cruza o estreito de Bósforo, que separa a Europa da Ásia, e emoldura a paisagem de uma cidade singular, com 26 séculos de história.
Mais de 2.600 anos de
história fazem de Istambul, na Turquia, uma cidade única no mundo.
Nas construções e monumentos, há a marca de três suntuosos
impérios: o Romano, politeísta, o Bizantino, cristão ortodoxo, e o
Otomano, fundado por guerreiros islâmicos. Cortada pelo golfo do
Chifre de Ouro, um braço de mar que separa a Europa da Ásia, à
margem do estreito de Bósforo e do mar de Mármara, Istambul parece
celebrar eternamente o encontro de duas civilizações. Religiosidade
e tradições milenares convivem com o ritmo de uma cidade de mais de
treze milhões de habitantes, que, no limiar de 2000, veio a
tornar-se um dos pontos mais valorizados da rota do turismo mundial.
Do alto da Torre
Gálata, um monumento de quase setenta metros de altura, no centro da
cidade nova, avista-se esta fascinante mistura de passado e presente.
O Chifre de Ouro estende-se a oeste, um porto natural que já foi
cobiçado por dezenas de povos ao longo dos séculos. A leste, o
estreito de Bósforo desenha os contornos que separam o lado europeu
da parte asiática da Turquia. Já a Ponte Gálata, com cerca de
quinhentos metros sobre o Chifre, liga a cidade antiga à nova,
confrontando os palácios dos grandes sultões de ontem com os
vendedores dos mais variados objetos em artesanato, além de peixes e
frutos do mar.
A deusa Hécate
evitou que Bizâncio fosse destruída
Vista da Igreja de Santa Irene. |
Já a cidade por eles
erguida no Bósforo, chamada mais tarde pelos romanos de Bizantium ou
Bizâncio, ganhou muralhas e tornou-se cada vez mais rica,
conquistando um importante lugar nas rotas comerciais da época.
Mesmo assim, não escapou de uma história turbulenta. Foi invadida
pelos persas, em 514 a.C., até ser novamente libertada pelos gregos,
sob o comando do rei Pausânias, em 478 a.C. Apenas um ano depois, os
atenienses expulsaram Pausânias do poder e a cidade tornou-se um
prêmio estratégico na longa disputa entre Atenas e Esparta,
passando sucessivamente de uma para a outra, ao sabor do resultado
das batalhas. Em 340 a.C., governada pelos atenienses, Bizâncio
quase foi destruída pela invasão dos macedônios, liderados por
Filipe II, pai de Alexandre, o Grande.
Segundo a mitologia
grega, a própria deusa Hécate havia interferido, obrigando Filipe a
suspender o sítio sobre a cidade. Invocada como divindade
responsável pela prosperidade material e pelo dom da vitória nas
batalhas e nos jogos, Hécate era às vezes representada como uma
mulher de três cabeças. Dizem as lendas que, em homenagem à
intervenção da deusa, os bizantinos fizeram cunhar moedas com uma
lua crescente e uma estrela. Atualmente, este símbolo aparece na
bandeira da Turquia, mas está relacionado ao crescente muçulmano.
Por volta de 62 a.C.,
Bizâncio passou a integrar o Império Romano, então em expansão,
como parte da colônia de Pompéia. A conquista foi confirmada no ano
196 da nossa era, quando o General Setímio Severo, em luta contra
dissidentes, mandou saquear a cidade, demolir a famosa muralha e
submeter os habitantes. Mais tarde, Severo reconstruiu parte de
Bizâncio e rebatizou-a com um nome romano, Augusta Antonina. Àquela
altura, o império havia se expandido para o Oriente e a cidade
voltou aos tempos de glória, ganhando um novo muro de defesa,
palácios, templos politeístas e termas, à moda romana. Deste
período, restaram poucos monumentos na Istambul de hoje. A cidade
mantém três obeliscos e as ruínas de uma arena, construída em 324
para proporcionar ao povo os mais apreciados divertimentos da época:
corridas de bigas e lutas de gladiadores.
No ano 330 a cidade se
tornou Constantinopla
Seria o Imperador
Constantino Magno (provavelmente nascido em 288 e morto em 337 d.C.)
quem revolucionaria a cidade, tornando-a capital política, religiosa
e cultural. Filho de Constâncio Cloro e de uma concubina, Helena,
Constantino foi aclamado rei por seus soldados, em 306, após várias
vitórias sobre os exércitos persas, sármatas e pictos. Apesar de
seguir os padrões da crueldade da época - chegou a mandar executar
a nulher, Fausta, e o filho, Crispo -, o imperador passou a ser
lembrado pela tolerância religiosa, uma vez que pôs fim à era de
perseguições ao cristianismo, que tinha produzido centenas de
mártires, torturados, crucificados ou destroçados por leões nas
arenas romanas.
As razões para a
conversão de Constantino ao cristianismo são até hoje muito
discutidas. Alguns estudiosos acreditam que a origem do ato tenha
sido puramente política, com o objetivo de captar o apoio dos
adeptos da nova religião. Outros argumentam que os cristãos eram
uma minoria sem posses na época, portanto não somariam nenhuma
pedra importante na construção do prestígio do imperador. Esta
corrente de estudiosos identifica uma genuína mudança de
mentalidade em Constantino. Eles se baseiam principalmente no
depoimento dado pelo governante, sob juramento, ao biógrafo Eusébio.
Ele contou que, em 312, durante a batalha na ponte de Múlvia, contra
o dissidente Maxêncio, viu uma cruz luminosa no céu, ofuscando o
sol. E a vitória nesta batalha foi decisiva para consolidá-lo no
trono.
A partir daí,
Constantino passou a se considerar o servo escolhido "da mais
Alta Divindade", segundo escreveu em vários decretos, no ano
seguinte. Ele admitiu que esta divindade era o Deus cristão e tomou
uma série de medidas para instaurar a liberdade religiosa, ao mesmo
tempo em que restringia o politeísmo. Entre as mudanças, está a
escolha do domingo como feriado sagrado da semana, de acordo com a
tradição cristã. E mais: ao longo de seu reinado, que se
estenderia até 337, Constantino transformou o império em uma
monarquia de direito divino, tornando-se também líder espiritual.
Para isso, ele
precisava de uma "nova Roma", uma capital fortificada,
erguida em posição estratégica e que simbolizasse a importância
dos territórios romanos do Oriente. Foi então que seus olhos se
voltaram para Augusta Antonina, antiga Bizâncio. A cidade foi
novamente rebatizada em 330, com o nome de Constantinopla, e
tornou-se capital do Império Bizantino.
A arte bizantina
floresceu como nunca, na época dos grandes imperadores. As imagens
dos santos cristãos, que nunca podiam ser pintadas sob a inspiração
de modelos vivos, substituíram as estátuas de Zeus, Vênus, Marte e
outras divindades pagãs. São mosaicos e ícones que decoram as
igrejas, hoje misturadas aos edifícios erguidos pelos muçulmanos,
conquistadores que vieram a seguir. A Igreja de Santa Irene,
construída provavelmente no ano 300, é uma das mais antigas e ainda
mostra características romanas, com três naves e uma cúpula. Mas a
mais importante delas é Hágia Sofia, ou Igreja de Santa Sofia,
iniciada no século IV pelo filho de Constantino, Constâncio. No
entanto, só durante o reinado de Justiniano I (482-565), imperador a
partir de 527, a construção ganhou impulso graças a dez mil
trabalhadores, que a concluíram dez anos após a morte do imperador.
Justiniano empenhou-se em reconstruir os territórios do Ocidente,
sitiados pelos chamados povos bárbaros, e também em confirmar a
supremacia do cristianismo. Em 529, chegou a fechar a universidade de
Atenas, um dos últimos focos da antiga religião politeísta. Também
é atribuída a ele a ordem para a construção da magnífica Igreja
do Cristo Pantocrátor (tradução aproximada: Cristo Regente do
Mundo), cujas paredes seriam cobertas por belíssimos mosaicos, no
século XIV, representando cenas das vidas dos santos.
A atribulada história
de Constantinopla teria um capítulo trágico em 542, quando uma
grande peste dizimou mais da metade da população. Mas os povos
vizinhos continuaram cobiçando da cidade, apesar do período de
decadência que se seguiu e durou até o século IX. Persas, avaros,
árabes, búlgaros e russos invadiram-na neste período.
Em 1504, a Igreja de
Constantinopla separou-se definitivamente do catolicismo de Roma e
passou a se chamar Igreja Cristã Ortodoxa, sob o comando dos
patriarcas. Aliás, as divergências entre Roma e Constantinopla eram
bastante antigas - no século VI, Justiniano havia exilado o Papa
Silvério e exigido obediência do pontífice seguinte, Virgílio.
Em 1204, foi a vez de
os cruzados - componentes dos exércitos formados durante a Idade
Média para submeter os povos não-católicos - tomarem
Constantinopla. Foram expulsos em 1261 por Miguel VIII, proclamado
novo imperador bizantino.
A partir daí, no
entanto, tornou-se cada vez mais difícil resistir aos ataques, que
vinham tanto do Ocidente quanto do Oriente. Os turcos
transformaram-se na principal ameaça. Em 1299, o Sultão Osmã I
fundou o reino otomano, cujos esforços expansionistas logo
transformariam em império. Em 1453, sob a liderança de Mahmud II,
as tropas turcas tomaram finalmente Constantinopla. Mais tarde, este
ano seria apontado pelos historiadores como marco final da Idade
Média. O mundo do mercantilismo, do absolutismo monárquico e dos
Estados fortes seria consolidado. Acompanhando as mudanças,
Constantinopla deixou de existir, passando a ser chamada de Istambul.
Istambul foi a sede do
Mais um período de
glórias seguiu-se a esta conquista. O auge seria o reinado de
Salomão, o Magnífico, entre 1520 e 1566. Este excêntrico soberano
lançou-se à conquista de vários territórios do Mediterrâneo e do
Leste da Europa, chegando até a sitiar Viena, na Áustria.
Conta-se que o sonho de
Salomão era dominar a Europa Ocidental e que, na tentativa de ganhar
aliados, ele teria enviado um crocodilo como presente ao Rei Henrique
VIII, da Inglaterra. A sobrevivência do animal no frio inverno
britânico seria um símbolo: a prova da resistência e
adaptabilidade dos turcos.
O sonho do sultão ruiu
definitivamente em 1683, quando o Império Otomano foi derrotado por
exércitos alemães e poloneses na Batalha de Kahlenberg, diante dos
muros de Viena.
Aos poucos, os turcos
foram perdendo os territórios europeus e hoje suas fronteiras
limitam-se a cerca de 780 mil quilômetros quadrados. Em compensação,
mantiveram Istambul, hoje um baluarte da religião muçulmana,
pontilhada por mesquitas e minaretes - torres de três a quatro
andares, com balcões, de onde se anunciam os horários das orações.
A cidade dos católicos
e dos muçulmanos
Mesquita de Suleiman |
Durante o passeio
marítimo, vêem-se, por exemplo, o Palácio de Dolmabahce, as
fortalezas de Anadolu e Rumeli e os pavilhões imperiais do Palácio
de Yildiz, onde ficam os palacetes de Cadir e Malta, que hoje abrigam
cafés.
Os hotéis estão na
região nova da cidade (Beyoglu), mas as principais atrações se
concentram do outro lado das Pontes Gálata e Ataturk, na parte mais
antiga. Lá está o Grande Bazar, o Kapali Carsi. Totalmente coberto,
tem mais de quatro mil lojas e destina uma rua a cada mercadoria,
como a Rua das Joias, a das Espadas, a dos Tapetes, a das
Antiguidades. Ali se deve praticar aquilo que parece ser um esporte
nacional - a pechincha, pois os negociantes já estabelecem os preços
tendo em vista que terão de baixá-los.
O Grande Bazar é
também um excelente local pare ser apresentado à deliciosa
culinária do país. As entradas são conhecidas como meze e podem
ser compostas por mexilhões, frango com molho de nozes e folha de
parreira ou ovas de peixe. Há ainda várias maneiras de servir o
carneiro ou os peixes, como a espada e a anchova. Acompanhando, o
raki, uma bebida destilada de uvas. Para terminar a refeição, o
mais indicado é pedir o kahve, o café turco, servido com o pó.
Para relaxar, os
turistas procuram os hanam, os banhos-turcos, que existem para homens
e mulheres, separadamente. Os banhos Cagaloglu e o Galatasaray são
considerados históricos.
A religião se une ao
turismo nas mais de quinhentas mesquitas. Cada mesquita é como uma
cidade em miniatura. Trata-se de um conjunto arquitetônico, com um
templo cercado por casas de banho, escola, biblioteca e hospital.
Antes de entrar, é bom lembrar que o islamismo exige que os ombros
estejam cobertos e que os sapatos sejam deixados na entrada. As
mulheres devem vestir saia, não podem passar na frente dos fiéis
que estiverem orando (ou eles terão que recomeçar as preces) e
rezam num local próprio, no alto, na parte de trás.
Milagre arquitetônico
com
uma cúpula de 50
metros de altura
Santa Sofia, a que foi a igreja mais famosa do cristianismo, numa representação antiga, da Crônica Universal de Schedel, 1493 |
Próximo a ela está
outro prédio que rivaliza em beleza e fama: a Mesquita Azul, assim
conhecida devido aos seus 21 mil azulejos nessa cor. De forma
diferente da de Santa Sofia, que tem quatro minaretes, a Mesquita
Azul foi projetada no século XII para ser ainda maior - e recebeu
seis minaretes. Seu arquiteto também era um ourives, o que resultou
num fino acabamento.
Já a Mesquita de
Suleiman foi construída entre os anos de 1550 e 1557, por Salomão,
o Magnífico, em cima de uma colina, perto do Chifre de Ouro. Desse
ponto se avista quase toda a cidade. No interior, observam-se as
paredes decoradas com versículos do Corão e os vitrais feitos por
um artesão conhecido como Ibrahim, o Bêbado.
Mas os maiores tesouros
estão no Palácio Topkapi. Antiga residência de sultões e centro
administrativo do império, contém uma ala considerada a mais rica
do mundo, pois abriga os presentes recebidos pelos sultões. Entre as
peças estão um trono com diamantes, rubis e outras pedras
preciosas, um diamante de 86 quilates e oito candelabros de ouro,
pesando 48 quilos por peça. Além disso, cada candelabro carrega
6.666 diamantes, que correspondem aos versos do Corão.
Outras alas do museu
que despertam curiosidade pelo antigo modo de vida são o harém, as
pequenas celas dos eunucos e a Via Áurea, um corredor de 46 metros
dentro dos muros do palácio, por onde concubinas e esposas
passeavam.
Istambul tem ainda mais
surpresas para o visitante. No Museu Arqueológico, por exemplo,
estão importantes coleções fenícias, romanas e gregas. Outra
parada que deve fazer parte de qualquer roteiro é a Cisterna de
Yerebatã, também chamada de Palácio Submerso, onde os arquitetos
do século VI produziram um belíssimo prédio, cuja principal
característica é a abóbada sobre 336 colunas coríntias.
Por Por Cristina
Azevedo e Carmem Zamora
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