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BUTÃO – A Terra do Dragão Trovejante

Por Maria Helena Avena


“Não deixe nada, apenas suas pegadas. 
Não leve nada, apenas suas memórias”.

 
Mosteiro Taksang (Ninho de Tigre) 
Foto - Detalhe, aqui.

Com essa mensagem, encontrada em diversos lugares espalhados pelo país, pode-se ter uma ideia da filosofia que pauta a vida e o cotidiano do povo do Butão, uma das duas últimas monarquias budistas do planeta (a outra é a Tailândia), que viveu tanto tempo isolado do resto do mundo e até hoje, mesmo após sua abertura ao turismo e controlado com mão de ferro pelo governo, conserva vivas suas tradições, arte e cultura milenares. 

O Butão é um pequeno reino, com cerca de 700 mil habitantes, encravado no Himalaia Oriental, entre a China e a Índia, e conhecido como a “Terra do Dragão Trovejante”, por causa das violentas tempestades vindas das montanhas durante o inverno. Por essa razão, o dragão é um símbolo nacional, reproduzido na parede das casas, templos e órgãos governamentais, e figura na bandeira laranja do país. Sua capital é a bela cidade de Thimphu (certamente o lugar mais tranquilo do mundo), situada há mais de 2.500 m acima do nível do mar.

 Bandeira do Butão

Um país onde a tradição ocupa um espaço privilegiado, a natureza é a estrela principal, e a lei maior que rege o país é Ser Feliz. O Butão é um dos lugares culturalmente mais preservados da Ásia e extraordinário em diversos aspectos. Um desses aspectos, com certeza único no mundo, é o de que, apesar do tamanho, demografia e relativo isolamento, o país é assunto de pesquisa em grandes Universidades do mundo, como  Harvard, Oxford etc., e a causa é um índice chamado Felicidade Interna Bruta (FIB), que foi criado na década de 1970 por Jigme Singye Wangchuk, pai do atual rei do Butão (Jigme Khesar Namgyel Wangchuck). É um índice muito peculiar que, por meio de um intrincado cálculo, identifica os elementos básicos que determinam aquilo que vai  proporcionar  o bem-estar da população. O conceito de FIB baseia-se no princípio de que o verdadeiro crescimento de uma sociedade humana surge quando o desenvolvimento espiritual e material são simultâneos.

Os pilares do FIB são: 1) Promoção de um desenvolvimento socioeconômico sustentável e igualitário; 2) Preservação e promoção dos valores culturais e espirituais; 3) Conservação do meio ambiente natural; e 4) Estabelecimento de uma boa governança. Os dirigentess do país acreditam que o cálculo do progresso deve levar em conta não apenas as riquezas materiais, mas, também, o bem-estar do povo. A ideia e implementação do FIB assinalou o compromisso do monarca de construir uma economia adaptada à cultura do país, baseada nos valores espirituais budistas.

A democracia foi introduzida por vontade do rei, não por pressão do povo. Depois de um histórico discurso, o quarto rei, Jigme Singye Wangchuck, nas comemorações do dia nacional do país, em dezembro de 2006, abdicou a favor do seu filho e anunciou a realização de eleições democráticas. Foi um raro caso de renúncia unilateral de um monarca ao poder, e um caso ainda mais raro de renúncia contra a vontade de seus súditos. Seu filho, o quinto rei, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, foi coroado para exercer o novo papel de monarca constitucional sem poder executivo. Os butaneses foram às urnas em 24 de março de 2008, terminando, então, mais de um século de monarquia absoluta. Mesmo assim, a imagem do rei está presente nas casas, bares, restaurantes e prédios públicos do país. Até o nome do partido que venceu as primeiras eleições legislativas do país é sui generis: Partido Virtuoso do Butão. 

 O quinto Rei do Butão Jigme Khesar Namgyel Wangchuck


Arte e cultura

O culto às tradições butanesas é uma política de governo e uma questão de sobrevivência. Pela sua localização, entre dois países de culturas muito fortes - China e Índia -, o Butão teve de preservar seus hábitos e costumes para não perder a identidade. Para proteger seu patrimônio cultural e ecológico, o governo faz campanhas nas escolas rurais, treina guias turísticos e controla o turismo com mão de ferro. Oficialmente, o país abriu as portas aos estrangeiros em 1974, depois de séculos de isolamento e de muitas discussões promovidas pelo rei e seus oficiais sobre impacto sociocultural, mas o número de turistas/ano é limitado.

 Paro Dzong

Recentemente, o rei reimplantou um antigo código (Driglam Namzha), que estabelece comportamentos e obriga todos os cidadãos a usar os trajes tradicionais, e que todas as edificações - sejam grandes monastérios, habitações particulares e até mesmo postos de gasolina - precisam adequar-se à arquitetura tradicional do país. E o povo apoia e cumpre satisfeito.

Sendo um dos pilares de sustentação do FIB, o Governo promove e estimula a arte e a cultura através de projetos e ações que beneficiam a população. Museus, Bibliotecas, Escolas de Arte e Ofícios, Centros Culturais, Centros Cívicos e Religiosos (Dzongs) e Escolas de Artesanato são abertos (e podem ser visitados pelos turistas) e frequentados pelos butaneses para pesquisas, cursos, seminários etc. Um dos mais importantes museus do país é o Museu Nacional – na cidade de Paro, que no seu acervo inclui pinturas, relíquias religiosas em prata e bronze, moedas e selos antigos, vasos, potes e outros objetos históricos, especialmente dos séculos XVI e XVII. Também, abriga fotografias e objetos que lembram os anos de monarquia do país (1907-2007). O Museu Phelchey Toenkhyim é também muito interessante, porque lá estão expostas as reproduções de moradias das pessoas de classe média alta do Butão em épocas passadas: ferramentas, equipamentos domésticos, banheira de pedra quente etc. O Museu Têxtil, também na capital do país (Thimphu), abriga coleção de peças de vestuário, que foram usadas pela família real desde 1907. 

 Museu Nacional

A Biblioteca Nacional do Butão, também em Thimphu, guarda um acervo extraordinário e raro. São dois edifícios: um deles, com quatro andares, abriga raros manuscritos, em dzongkha - língua oficial do Butão -, e no outro estão disponíveis obras em inglês e outras línguas ocidentais. Essa Biblioteca foi fundada em 1967 e construída no estilo tradicional butanês, como todos os prédios do país. Tem extensa coleção, com cerca de 6 mil livros tibetanos e butaneses, manuscritos e xilogravuras, e cerca de 9 mil placas e blocos de madeira para impressão de livros religiosos.

Faz parte do acervo do Museu, também, uma das maiores coleções da literatura budista Mahayana no mundo, originalmente escrita em linguagem clássica do mundo dos Lamas, chamada choekad choekad, além de uma coleção considerável de livros, em inglês e em algumas línguas ocidentais, relacionados principalmente à região do Himalaia, ao Butão e ao budismo.

 Campeonato de Arco e Flecha

A Biblioteca Nacional é considerada um lugar sagrado, que representa para os butaneses todos os três aspectos do Buddha. Estátuas e pinturas na biblioteca representam o aspecto físico do Buddha, livros e blocos de impressão representam o aspecto verbal de Buddha, enquanto os oito stupas (monumento religioso budista) no altar do andar térreo do edifício representam o aspecto mental de Buddha. A língua falada no país é o dzonga. No Butão existe, também, uma língua clássica sagrada utilizada nas funções religiosas, e preservada até hoje, chamada chöke. O butanês raramente é falado fora do Butão e arredores.

Outro importante componente da cultura do Butão são os centros civis e religiosos, conhecidos como Dzong, símbolos da identidade e cultura butanesa. São antigos mosteiros/fortes hoje usados como sedes administrativas/religiosas. O país tem 20 distritos e em cada um existe um Dzong. Aquele em mais evidência, claro, é o da capital, Thimphu Tashichho Dzong, onde estão localizados os escritórios do rei e de seus ministros, seguido pelo Dzong da cidade de Punakha, que foi capital do pais até 1960 e é residência de inverno do líder religioso Je Khenpo. As pessoas que ocupam os altos cargos dos Dzongs portam símbolos distintos, uma espécie de cachecol de cor vermelha viva e uma espada com a empunhadura finamente lavrada.

 Festival religioso Tsechu em Thimpu

A arquitetura butanesa é de fato única no mundo e se revela uma das maiores relíquias do reino. As casas são geralmente construídas sem projeto arquitetônico, mas os butaneses fazem consultas astrológicas antes de erguer suas residências, algumas destas com cerca de 900 anos. As moradias, a maioria sobrados, são de madeira ou taipa, com balcões ou arcadas ricamente entalhados e pintados à mão em cores vibrantes. O interessante é que toda estrutura de madeira, tanto das casas como dos templos, é feita por meio de encaixe das vigas, sem o uso de pregos ou barras de ferro, e as telhas são amarradas com fios de bambu.

 Líder Espiritual Budista "Je Khenpo"

Algumas pinturas nos templos e casas são verdadeiras obras de arte, com imagens de dragões, flores, símbolo do phalus (que representam a fertilidade e boa sorte), círculos astrológicos etc. No Butão, nenhuma decisão é tomada antes de se consultar os monges astrólogos. Os butaneses são simples, hospitaleiros e muito gentis. Não apresentam os sinais de estresse, pressa e impaciência tão comuns nas culturas ocidentais. A qualquer pergunta do tipo "posso fazer isso?", eles respondem invariavelmente o mesmo: "se isso te faz feliz, sim".

Religião

Outro aspecto diferenciado do país é que os butaneses cultuam o budismo Mahayana, que tem garantia Constitucional no país e é a herança espiritual que o povo deve passar para as próximas gerações, pregando a paz, a compaixão e a não violência. Os Butaneses acreditam que mente, fala e corpo têm de estar em harmonia. O chefe religioso, Je Khenpo, goza de uma importância quase idêntica à do rei, sendo também respeitadíssimo pela população. Filas imensas são formadas para receber as suas bênçãos, ritual que faz parte do dia-a-dia do povo butanês.

 Roda de Orações Budista

A maioria dos butaneses segue o Budismo (74%), com exceção dos habitantes do sul (fronteira com a Índia), de origem nepalesa, que seguem o hinduísmo (21%).  O budismo foi introduzido no país no século II d.C., mas só se estabeleceu como religião dominante no século VII, com a visita de Padmasambhava, o famoso mestre tântrico indiano. O Butão tem cerca de dois mil templos e monastérios budistas tombados pelo governo. Dentre eles, os chortens - um dos maiores símbolos da cultura butanesa - templos pequenos, sem portas ou janelas, construídos para abrigar imagens de Buddha e relíquias religiosas. Também chamados de stupas, eles estão por todo o país: nas ruas, montanhas, vilarejos e centros urbanos. 

Entretando, o mais importante e sagrado de todos é o Monastério de Taktshang (Ninho do Tigre), porque, diz a lenda que o santo Padmasambhava (também conhecido como Guru Rinpoche) milagrosamente voou até lá montado em um fabuloso tigre. Foi construído em 1692, na boca da caverna Taktsang Senge Samdup, onde o santo budista Guru Padmasambhava teria meditado lá pelos idos anos de 800 d.C., e está situado a 3.120 metros de altitude. O monastério tem sete templos abertos ao público, e para chegar até lá existem duas opções: a pé ou montado em uma mula, providenciada pelas companhias de turismo.

 Os 108 Chortens (pequena estupa)

Turismo

O número de visitantes é controlado com mão de ferro pelo governo, que determina o preço dos pacotes turísticos, e 35% da renda vai para projetos de educação e saúde. O interessante é que as agências de turismo no país têm um preço único. O diferencial é a forma com que atendem os clientes. Turistas estrangeiros só entram no país depois de pagar uma taxa diária, que varia de US$ 200 (em julho e agosto) a US$ 250 (nos demais meses). A taxa contempla serviços de guia, hospedagem em hotel de categoria turística, alimentação (pensão completa) e transporte dentro do país. A ideia é evitar que o número de estrangeiros seja maior do que aquele que o país pode abrigar em seus cerca de 1.900 quartos de hotel. Os grupos são sempre acompanhados por um guia local, durante toda a estada no país. A moeda local é o Ngultrum, e equivale à rúpia indiana. Os cartões de crédito não são aceitos na maioria dos lugares, e os visitantes são avisados para utilizar preferencialmente dinheiro ou cheques de viagem

 Detalhe da arquitetura butanesa


Um pouco da história...

Até o século XVI o Butão era um agrupamento de pequenos reinos que disputavam o poder entre si. Essa situação mudou em 1616 com um monge tibetano, Ngawang Namgyal. Após muitos anos viajando e pregando pelo Butão, adquirindo cada vez mais prestígio e poder, ele se declarou o líder religioso do país com o título de Shabdrung Rimpoche (jóia preciosa aos pés da qual as pessoas se prostram). Ele construiu os primeiros Dzongs (monastérios-fortalezas) e, com isso, resistiu aos inimigos que disputavam sua liderança política. Muitos desses Dzongs construídos por ele, como Simtokha, Paro e Punakha, existem até hoje.

 Punakha Dzong

Shabdrung percebeu a necessidade da criação de uma identidade nacional que diferenciasse o Butão do Tibet e estabeleceu um sistema de cerimônias, festivais e um código de leis com esse objetivo. Com a morte de Shabdrung, o Butão mergulhou, nos 200 anos seguintes, em um período de grande instabilidade política. A partir de 1772 o Butão se viu envolvido com a Inglaterra, primeiro na condição de inimigo, por uma disputa territorial com Cooch Behar, quando a Inglaterra ajudou a expulsar tropas butanesas, e depois como aliado, através de uma série de tratados comerciais.

Em 1907, com o apoio da Inglaterra, foi estabelecida uma linhagem hereditária e Ugyen Wangchuck foi coroado como o  “Primeiro Rei”, com o título de Druk Gyalpo, o Rei Dragão. Ele reinou até sua morte, em 1926, sendo sucedido por seu filho, Jigme Wangchuck, o Segundo Rei. Este introduziu um sistema mais moderno de impostos e, após a independência da Índia em 1947, fez um acordo em que a Índia reconhecia o Butão como um país independente e se comprometia a não interferir nos assuntos internos.

Em agosto de 1949, o Butão concluiu um tratado com a Índia, através do qual perpetuava com o novo parceiro o antigo acordo mantido com os ingleses. Mas, em 1950, a República Popular da China ocupou o Tibet, desequilibrando um pouco as influências naquela região e justificando as medidas de segurança adotadas pela Índia ao longo das fronteiras e a criação de um exército butanês orientado por oficiais indianos. Diante de um vizinho tão poderoso como a China, o pequeno reino foi obrigado a aceitar toda a maciça ajuda que a Índia oferecesse.

 Pequenos monges budistas

Abertura do país

Não foi por acaso que em 1955 uma revista norte-americana comentou que até aquela época não mais que vinte homens e uma mulher de raça branca haviam visitado o Butão. O Terceiro Rei, Jigme Dorji Wangchuck, subiu ao trono em 1952, após a morte de seu pai. Ele foi educado na Índia e Inglaterra, e assim que assumiu o trono começou a introduzir mudanças no sentido de modernizar o país. Estabeleceu uma assembleia nacional, aboliu o sistema servil e procurou abrir o país para o exterior fortalecendo mais ainda as relações com a Índia.  Com a abertura dos primeiros caminhos, começou-se a pensar em atrair o turismo. Antes das estradas, só entravam estrangeiros no país mediante um convite escrito, feito pela família real, sendo o convidado recebido na casa de hóspedes do governo. Obviamente, não era essa a melhor maneira de operar uma indústria turística e, para complicar as coisas, ainda era necessária uma permissão especial do Ministério das Relações Exteriores da Índia.

Tendo por objetivo resolver esses problemas e receber o reconhecimento mundial como país, o Butão inaugurou uma missão nas Nações Unidas e começou a emitir selos postais. Em seguida principiou a construir albergues turísticos. O rei Jigme Dorji Wangchuck morreu em 1972 aos 44 anos, sendo sucedido pelo seu filho Jigme Singye Wangchuck, então com 17 anos. A sua coroação foi o ponto de partida para grandes mudanças na política de abertura do Butão ao turismo, e foi a primeira vez que se permitiu a entrada da imprensa internacional no país. Este rei criou, na década de 70, o índice FIB.

Em outubro de 2011 será realizado o casamento do monarca, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, com a estudante Jetsun Pema, em cerimônia que é considerada pelo povo butanês como sinônimo de benção para o país.

O budismo tibetano, nos seus antigos manuscritos, falava que existia um país ideal localizado a norte ou oeste das montanhas dos Himalaias. Esse mito inspirou o escritor inglês James Hilton a escrever o romance Horizonte Perdido com o seu Shangri-La, no século XX. Estar no Butão é reviver esse mito e as palavras de James Hilton: “um lugar paradisíaco situado nas montanhas dos Himalaias, onde o tempo parece não existir, as pessoas convivem harmoniosamente e a felicidade e a saúde são permanentes.”

 Jornalista Maria Helena Avena desembarcando no Butão

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