Patrimônio da Bahia

Patrimônio da Bahia
Igreja particular, transformada em museu. Santo Amaro - Bahia
A reportagem "O Império Leiloado", sobre o leilão dos bens da Família Imperial banida pela República, realizado no Brasil em 1890, publicada em A Relíquia no ano passado, demonstrou o descaso do governo da época  com os bens artístico-culturais no Brasil. Mas, esse desprezo pelo nosso patrimônio vem de muito antes do século XIX.
Inúmeras peças de arte sacra e imagens religiosas, assim como mobiliário e pinturas, só existem hoje porque foram adquiridas, restauradas e conservadas por colecionadores e antiquários, caso contrário estariam destruídas, jogadas no lixo da história. Não faltam depoimentos, documentos e livros mostrando como eram feitas as vendas dessas peças pelo Brasil afora. Além disso, recentemente, o antiquário baiano Itamar Musse patrocinou uma grande pesquisa na Bahia, para mostrar a verdadeira realidade do comércio de arte sacra no Brasil. O resultado, que recebeu o título de ""Notícias sobre o Patrimônio da Bahia", o leitor  confere neste artigo. 
Nos primeiros anos da partilha de terras portuguesas em sesmarias, quando homens atraídos para o novo continente atravessaram o Atlântico na busca desenfreada por riqueza e poder na terra brasileira, financistas, mercadores, mareantes alucinados frente ao lucro certo, ainda que perigoso, não vacilaram em investir recursos em terras do Brasil.
E, paralelamente a isso, a terra extensa, a água farta, o solo produtivo, a mata luxuriante, os escravos vindos da África, a artilharia resultante da utilização da pólvora, a bússola, os novos tipos de equipamentos náuticos, os novos tipos de embarcação, tudo isso transformava o mais frágil homem no mais destemido herói, desbravador do desconhecido.  
Talvez, nunca o substantivo esperança tenha sido usado tanto como entre o final da Idade Média para ae o início da Idade Moderna: Cabo da Boa Esperança, Terra da Esperança, Engenho Esperança, até a Virgem recebeu a invocação desse título para reforçar a realização do desejo humano.
Muitos homens do mundo civilizado, portadores de títulos de nobreza, arriscaram suas vidas e dinheiro no projeto da produção do açúcar, como ocorreu desde 1532, e que perdurou por mais de trezentos anos. Nesse sentido, no Recôncavo Baiano, nas terras do massapé, nasceu o canavial que deu origem, através desse produto, à nobreza que viveu o período de opulência do Brasil.
Quanto a isso, a história registra nomes nos objetos marcados pelos brasões que valorizavam os serviços de porcelana, prata, cristais e tecidos da aristocracia do açúcar. Hoje, tais objetos são vistos nas residências de bom gosto e ou abastadas e nos museus, atraindo a curiosidade de turistas e visitantes.
Há mais. Aqui, no maior porto do Atlântico Sul, da primeira capital da província, na Baía de Todos os Santos, desembarcaram esses serviços de luxo, as peças decorativas, o mobiliário, imaginária , objetos de arte sacra , tudo isso recheou a Casa Grande e as Capelas dos engenhos de açúcar em épocas de bons lucros.
O tempo apagou o fogo dos engenhos. Todavia, há um caminho pontilhado de doces e amargas lembranças... Em alguns, resiste uma singela marca, em outros sobrevivem ruínas de uma capela tão rica quanto uma matriz , em outros ainda a arquitetura que persiste sóbria na sua natureza, dominando a tranquila paisagem no embalo das flechas dos canaviais ao vento... Ou apenas o sítio que se debruça sobre o rio, tal como Narciso, sozinho, mirando a sua própria imagem ou a semelhança desse frágil fio que passou.
Nos primeiros anos da Colônia, o clero regular financiou a construção das primeiras capelas, algumas igrejas de ordens religiosas e capelas de padroados de ricos latifundiários já eram decoradas. Mas, o que restou dessa época só pode ser inventariado a partir de registros históricos, livros de tombo de igrejas ou através de vestígios deixados em construções antigas e em ruínas. Dessa forma sabe-se, entre outras coisas, que a capela do engenho da família Adorno, na Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira do Paraguaçu, tem vestígios de belíssima pintura em seu teto.
O Engenho Velho do Paraguaçu era um morgado em 1584, localizado no lagamar do Iguapé. Da Casa Grande restam ruínas das paredes de pedra, tendo se conservado a Capela de Nossa Senhora da Pena, de 1662, toda revestida de azulejos do tipo massaroca, com o púlpito em pintura original, a pia de água benta, (em lioz), porém as imagens de Nossa Senhora da Pena e da Paz desapareceram e nada se sabe do mobiliário primevo.
Convento e Igreja de Santo Antônio do Paraguaçu - Bahia

Do século XVIII em diante, cada solar ou Casa Grande possuíam em sua capela as melhores obras de arte que podiam adquirir e contratavam, quando necessário, mestres de douramento de obras de talha, encarnadores, carpinteiros, e pedreiros e, ainda nesse século, as descobertas das minas de ouro de Jacobina e das Minas do Rio de Contas (ambos na Bahia) e em Araçuaí (em Minas Gerais , mas que, naquele tempo, pagava seus quintos à Casa da Moeda da Bahia) trouxeram mais riquezas à região. 
Em linhas gerais, vários aspectos foram abordados: atividades sociais, artísticas, e religiosas da Bahia; nota-se  a orientação e a presença, nessa época, da atuação dos religiosos para com seus bens. Os padres posteriores deveriam conservar os tesouros artísticos que receberam de outros tempos. Mas não foi isso que aconteceu em seguida: em 1912, no Governo do Dr. José Joaquim Seabra e seus urbanistas, foram destruídas a Igreja da Ajuda, (conhecida como a Sé de Palha), a Matriz de São Pedro Velho, a Igreja do Rosário do Pereira, o Convento e a Capela Dourada da Igreja das Mercês, a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe e a Sé , que estavam no roteiro da reforma de Seabra.  
Lembremo-nos de que um caso marcante na história da Bahia é a transação pela Arquidiocese de Salvador, da Sé Primacial do Brasil, em 1933, cuja arquitetura (sem similar) foi vendida  por 300:000$000,  em moeda da época (posteriormente desapareceu), além disso foi garantida a iluminação gratuita, por dez anos, ao seminário de Santa Tereza e à Igreja da Misericórdia, pela Linha Circular de Carris da Bahia., e veio, depois, a venda do Palácio Cardinalício (ou Residência Arquiepiscopal,), monumentos estes não protegidos pelo sistema de Proteção dos Bens Culturais do país. 
Desaparecidos, transferidos, doados e mutilados Na Igreja de São Pedro Velho havia um teto pintado em perspectiva por José Joaquim da Rocha e desaparecido, e seu altar-mor foi transferido para a Igreja do Cabula. Os objetos sacros da Capela da Igreja de Nossa Senhora das Mercês foram vendidos a colecionadores e alguns, doados ao Museu de Arte Sacra da Bahia.  
Outras igrejas sofreram ainda mutilações por modismos, furto e, também, venda de peças, este foi o caso dos painéis de azulejo da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, do século XVIII: "A Adoração de Jesus pelos Reis Magos," medindo 2.28 x 3.07 e o "Casamento de D. José," medindo 2.23 x 3.07m, este último com recibo ao comprador assinado pelo tesoureiro José Corrêa, da Irmandade do S.S. Sacramento de Nossa Senhora do Pilar. Esses painéis foram substituídos por dois andares laterais dedicados a Santa Luzia e a São Sebastião. Da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos desapareceram valiosos trabalhos, de pintores como Antônio Joaquim Franco Velasco e do mestre José Joaquim da Rocha. 
Vendas, doações e desmanches Do Convento Santo Antônio de Paraguaçu, azulejos, dentre outros objetos, foram vendidos para colecionador particular e saíram da Bahia, para o Rio de Janeiro. Muitos objetos sacros foram doados por seus proprietários a igrejas, museus e casas de cultura. Outros, porém, não tiveram a mesma sorte. "Na igreja da Ajuda, 1834, os Mesários resolveram tirar as alfaias velhas de ouro, e transformaram  três peças sacras, um turíbulo e uma naveta em uma cruz de prata."
Em 1841, o Visconde de Pirajá dera 170$000 (cento e setenta mil réis) ao mestre entalhador Francisco Matos Rozeira para fazer um novo altar. Segundo Carlos Ott, agora havia Viscondes nas chefias das Irmandades que faziam o que bem entendiam. E os Mesários já estavam acostumados a esses Coronéis na vida civil. Para se ter uma ideia, o Provedor da Irmandade do Senhor dos Passos mandou derreter quatro 
tocheiros de prata (que antes serviam na Procissão da Sexta Feira de Passos e que não eram mais, usados), para que se fizesse deles obras de prata de que a Irmandade necessitava: uma cruz de prata para banqueta, três peças sacras para o altar-mor, e um turíbulo. 
Outro assunto importante e até então desconhecido por leigos são as encomendas feitas pelas Irmandades, Provedores ou Mesários aos prateiros, ourives, e escultores para adornarem os altares daqueles com peças artísticas: quando os profissionais terminavam a encomenda, outros irmãos, para não parecerem mais pobres ou para demonstrarem mais poderio, mandavam fazer peças iguais e os moldes usados eram os mesmos.
 Assim é que sacrários, castiçais de banqueta, altares, navetas, etc,., foram irmãos gêmeos saídos das mesmas mãos e dos mesmos moldes. Marieta Alves, Carlos Ott e os recibos encontrados nos livros de receitas e despesas atestam a confecção desses objetos. Para se ter uma ideia, Domingos de Souza Marques executou para a "Capela do S.S. Sacramento da Sé, 1780, seis castiçais grandes de banqueta, pelo mesmo modelo dos que ele estava concluindo para a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. 
No ano de 1790, A Mesa da Sé Primacial mandou reformar duas lâmpadas antigas do Altar do Santo Cristo pelos moldes das anteriores executadas pelo Capitão João da Costa Campos. A igreja da Ordem 3ª manda fazer sete lâmpadas de prata iguais. Sendo que uma veio do Porto em 1800 e as outras seis foram executadas na Bahia pelo Capitão Joaquim Alberto da Conceição Matos." As Irmandades disputavam entre si as alfaias de melhor qualidade. Muito grave, nesse período, foi o derretimento de objetos de rica fatura artística e de grande importância, sob pretextos os mais diversos: "ao gosto mais moderno, imprestáveis, o 
tamanho do objeto que tirava a visão do trono", etc. E o pior é que em todo o país foram cometidos atos semelhantes.
Ao longo dos séculos, a evolução dos estilos, a moda, a incúria, o desconhecimento, a mentalidade, o desejo de "modernização", de progresso, aliados aos interesses dos dirigentes das Irmandades, tudo isso fez com que os Mesários aprovocassem uma substituição paulatina das peças do acervo sacro, desde bens móveis, incluindo documentos e, a bens integrados, considerando retábulos, altares, forros, sanefas , cancelos, e gradis (inicialmente de madeira, posteriormente de ferro).


Os sobrados da capital baiana de hoje já foram (e alguns ainda são) as residências de nobres e senhores de engenho do Brasil Colonial. Um dos descendentes do Conde da Palma, residente no solar Ferrão, registrou: [...] no primeiro andar, com duas colunas retorcidas, situa-se a magnífica Capela, ricamente ornada, onde outrora foi o Seminário Maior Nossa Senhora da Conceição dos Jesuítas, vendido à família Ferrão quando da expulsão dos religiosos e que gravou em pedra de lioz o seu brasão no século XIX, depois vendido ao conde de Palma..."
No ano de 1888 a aceleração da decadência dos Senhores de Engenho era evidente: perda e esgotamento das riquezas; arruinamento das finanças e da casa; na Capital e no Recôncavo, sofrem-se oscilações dos endividamentos e das crises. As Casas Grandes e Capelas que antes apareciam nas cartas antigas como Freguesia, Caboto, Motoim, dentre outros espalhados ao longo dos rios Paraguaçu, Subaé, Serigipe, Pitanga... apagam seu brilho, mas suas histórias continuam.
A Capela do engenho Santo Antônio de Pindobas, famosa por suas festas, cujo proprietário (Conde de Passé) está ai sepultado - é do século XIX e possui nave com forro em abóbada de berço, capela-mor, duas sacristias, coro e pequena sineira. Em seus altares estiveram Santo Antônio, Nossa Senhora da Conceição, São Roque, Santana e dois crucificados. O local possui ainda lavabo rococó, dois consoles dourados e lustre de cristal para velas. 
A Capela do Engenho São Miguel e Almas (morgado), por sua vez, possuía nave ladeada de arcaz e coro, frontão barroco, seis tribunas que se abriam para a capela, piso em mármore preto e branco.   invocação de São Miguel, de Nossa Senhora do Desterro, de São José, de São Pedro e de São Joaquim, e crucifixo e Cristo em marfim. No entanto, a capela foi destruída no final do século XX. 
É grande a lista de igrejas e capelas do Estado da Bahia que foram destruídas, abandonadas, deterioradas pelo tempo ou que tiveram suas imagens e peças sacras vendidas, doadas, saqueadas ou também destruídas, das quais citamos:- Capela do Engenho D'Água: planta octogonal, única no Recôncavo baiano, possuia capelamor, sacristia, ossuário, colunas toscanas com pedestais e telhado que apresenta beiral de
beira-seveira. Há aí também uma imagem de Nossa Senhora do Rosário, um arcaz e um sino. 
O orago é o Senhor Bom Jesus de Bouças, imagem de proporção avantajada, somente a cruz mede mais de três metros. O engenho foi vendido e a notícia que se tem é de que a imagem foi para Ilhéus.
- Capela de Nossa Senhora do Vencimento, pertencente ao Engenho Paramirim: nave e capelamor ladeadas por colunas e arcos, possuia sacristia, ossuário, coro e silhares de azulejos. Tudo foi arruinado;- Capela do Engenho Quicengo: porte de igreja matriz, com arcos trilobados, suas torres tinham terminações bulbosas. Arruinada;- Capela do Engenho Água Boa: conserva planta semelhante às igrejas matrizes, como as de São Bartolomeu (em Maragogipe) e Santo Amaro de Ipitanga, cuja invocação é  Nossa Senhora Rainha dos Anjos, levada para a Usina Paranaguá. Encontra-se em péssimo estado de conservação, assim como a Capela da Fazenda Cabonha (1921) cujo padroeiro era São Joaquim da Cabonha, com devoção arraigada nos moradores, desde que a propriedade era engenho."[...] a grade de ferro, em forma de meia lua e que encima a varanda, foi da antiga Igreja da Ajuda, a primeira levantada pelos jesuítas, bem como o velho confessionário de jacarandá e a lâmpada de latão para o Santíssimo em frente ao altar, os quais foram adquiridos através de Dr. Julio Viveiros Brandão que, quando Intendente da Cidade do Salvador, sacrificou o pequeno e precioso templo; as peças achavam-se abandonadas em um depósito de materiais na rua da Vitória, recebidas pelo proprietário da fazenda, em 1927, para pagamento de uma dívida...  na área que separa a Capela propriamente dita da nave, via-se linda lâmpada para vela, em cristal lapidado e bronze, que foi da portaria do Convento do Carmo de Cachoeira, oferta do seu atual Prior, o Reverendíssimo Frei Pedro Thomaz Margallo."
"Outro lustre de bronze com lugar para um candeeiro de querosene e mais vinte velas, com mangas de cristal, gravado o nome de uma Irmandade. Cravada na parede, uma  pequena e interessante pia de água benta, em pedra de lioz, que pertenceu ao belo Convento de Santo Antônio do Paraguaçu." O professor Carlos Eduardo da Rocha  registrou  ter ouvido que o "Dr. Góes Calmon viu uma carroça levando da igreja uma quantidade de madeira escura, tendo chamado sua atenção. 
Eram grades trabalhadas da igreja. Perguntou ao carroceiro de onde era a mudança, ao que respondeu o homem: nada não, doutor, essas grades são para fazer fogo. Então, ele propôs a compra e hoje elas estão na antiga casa que foi sua residência, atualmente Academia de Letras." As grades são de jacarandá, do século XVIII, e foram da Igreja de Santana. Os painéis de azulejos (de 1733) da casa Góes Calmon, foram objetos de estudo de especialistas renomados como João Miguel dos Santos Simões e, Mário Barat (professor de História da Arte) e José Valladares. Para Simões, os painéis seriam oriundos do Antigo Colégio dos Jesuítas. Para Barata, os azulejos vieram do Convento do Carmo. Para Valladares, os originais do Carmo estão na varanda. Desses painéis, aqueles alusivos  à vida de São Gonçalo originam-se do silhar da nave da Igreja de São Gonçalo do Amarante, no município de São Gonçalo (Recôncavo Baiano,), e foram doados pelo Sr. Jaques Pedreira.Antes do Decreto-Lei nº 25 de 30 novembro de 1937 (Lei de Proteção de Bens Culturais no Brasil), quando os proprietários assumiam o ônus da conservação do patrimônio, de seus bens culturais, fosse a Igreja, fossem as Irmandades e os próprios civis, todos dispunham do direito de propriedade e de livre comércio desses bens. Entre 1937 e 1978, os bens arrolados nos Livros de Tombo da União só são alienáveis em condições específicas ditadas por lei, mantendo-se afora isso um livre comércio sem proteção legal. Na Bahia exemplificam-se a Capela Dourada das Mercês, a Igreja do Carmo, Igreja de São Pedro Velho, A Igreja dos Aflitos e tantas outras capelas e monumentos, que não foram tombados.

Colaborou Itamar Musse
Fonte: textos de José Pedreira/MAB

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