Pintura brasileira

Ismael Nery


"Não tenho sido na vida senão um ator sem vocação. Ator desconhecido, sem palco, sem cenário, sem palmas". Assim foi Ismael Nery, em quem a inquietação e a angústia conviveram lado a lado a uma preocupação essencial com o amor e a comunicação entre os indivíduos. Foram muitas as suas dicotomias, todas expressas em sua arte, que abrangeu poesia, pintura e desenho.
Ao contrário de Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Vicente do Rego Monteiro, entre outros modernistas que voltaram-se para a louvação do nacional, do regionalismo, dos temas indígenas e afro-brasileiros, Ismael não se ateve a grupos e dedicou-se a expressar o universal, sempre através da figura humana, em retratos, auto-retratos e nus. Mas não deixou o espírito brasileiro de lado. Pode-se identificá-lo em inúmeros personagens do pintor por mais universais ou atemporais que sejam, como em quadros com personagens negros, trajados ao estilo dos malandros cariocas ou com roupas tipicamente brasileiras. Em sua obra, relativamente pequena, com cerca de cem óleos e aproximadamente um milheiro de aquarelas, guaches e desenhos, pode-se distinguir três fases: a expressionista, que vai de 1922 a 1923; a cubista, de 1924 a 1927 e a surrealista, de 1927 ao fim da vida. As duas primeiras fases, consideradas as mais fecundas artisticamente, foram influenciadas por Picasso, enquanto que a segunda, fruto do contato com a obra de Chagall e outros surrealistas, elevou Nery ao status de precursor do surrealismo no Brasil. Além de ser pintor e desenhista, Nery buscou sempre novas técnicas, que aplicava com destreza em desenhos e ilustrações de livros. Atuou também como cenógrafo, e é correto afirmar que sempre esteve receptivo às correntes artísticas modernas mantendo, no entanto, características próprias.
Paraense, nascido a 9 de outubro de 1900, Ismael Nery muda-se para o Rio de Janeiro no ano da morte de seu pai, 1909. Ao completar 18 anos, começa a estudar na Escola Nacional de Belas Artes (Enba) onde, como tantos grandes talentos, era um aluno rebelde. Acaba deixando a Escola, mas mesmo assim, dois anos depois, em 1920, viaja para a Europa, especialmente França e Itália, e estuda na Academia Julien, de Paris, e na Escola de Arte. Lá, deslumbra-se com a história artística do Velho Mundo e com os mestres do passado, chegando a pensar, após ter contato com as obras de Ticiano e Tintoretto, por exemplo, que era inútil pintar.
Quando retorna ao Brasil, em meio à ebulição cultural de 1922, passa a pintar e desenhar com maior frequência e intensidade. No mesmo ano, une-se à poetisa Adalgisa Ferreira, que seria reconhecida nacionalmente com seu nome, como Adalgisa Nery. Dessa união, que durou até a morte do pintor, nasceram dois filhos. Por outro lado, como sua pintura não atraía o público, Ismael tinha que ter uma forma de se sustentar. Se torna, então, funcionário público, começando a trabalhar como desenhista de arquitetura no Patrimônio Nacional do Ministério da Fazenda.
No Ministério, conhece o poeta Murilo Mendes, que se tornaria seu grande amigo e, mais tarde, nos anos 60, seria o responsável pelo ressurgimento de sua obra. Murilo integrou o pequeno círculo de amigos que conseguiu compreender a arte de Ismael. Por conta disso, foi um grande incentivador de sua obra, escrevendo artigos sobre o amigo, mas estes também surtiam pouco ou nenhum efeito. Nery era, ainda, inovador demais para a sociedade em que se encontrava. Segundo Murilo, Nery, quando recém-chegado da Europa, "Esperava uma grande transformação do conceito de artista ou talvez uma volta do conceito clássico, pois encarava o artista como um ser harmônico, sábio e vidente, e não um simples cultor de temperamento."
Tendo reconhecido sua vocação, nunca deixou de cultivá-la, como todos os grandes artistas. Gênios como Mario de Andrade e Manuel bandeira, logo se deram conta de sua grandeza. O primeiro, inclusive, em um artigo de 1928, enuncia alguns pontos prováveis do desprezo do público por Nery, como o pouco refinamento técnico de suas pinturas, a rapidez com que ele trabalhava, parecendo que "os problemas se enunciavam nuns quadros, e são desenvolvidos noutros para terminar em ainda outros" e sua busca por "um tipo ideal representativo do ser humano".
E, apesar da rejeição, Nery não era, realmente, homem de um só talento. Além dos desenhos, pinturas e poemas, em 1926, idealizou uma filosofia própria, fundamentada no catolicismo e no neotomismo. O Essencialismo foi chamado assim por Murilo Mendes por ter como proposta principal a abstração do tempo e do espaço. No entanto, Ismael nunca chegou a escrever sobre ela. Apenas depoimentos de amigos e alguns poemas seus referem-se a essa filosofia.
Em 1927, retorna à Europa, desta vez com Adalgisa. Conhece André Breton, o principal teórico do surrealismo e entra em contato com a produção artística de Chagall e Miró. O surrealismo europeu, além do cubismo de Picasso e a metafísica de De Chirico são cruciais na construção de sua obra. Ao retornar, já munido de novas influências, realiza uma exposição em Belém, sua cidade natal, sem obter sucesso algum. No ano seguinte, no Palace Hotel, no Rio de Janeiro, mais uma exposição revela-se um fracasso. Ao contrair tuberculose, com aproximadamente 30 anos, Nery se vê obrigado a deixar as tintas de lado e passa a dedicar-se a desenhos e poesias. Mais uma vez, a angústia do artista se exprime através de figuras mutiladas e poemas nos quais o autor se põe cara a cara com Deus. Segundo André Seffrin, sobre a parte final da obra de Nery, "Seu gênio transparece sobretudo nas aquarelas e nos desenhos que realizou nos poucos anos que antecederam sua morte. O Ismael Nery dilacerado, habitante inquieto de uma paisagem humana corrompida, é visível nesses trabalhos."
Um exemplo da angústia perante a morte inevitável é o poema confissão, feito no ano de 1933: "Não quero ser Deus por orgulho / Eu tenho esta grande diferença de Satã / Quero ser Deus por necessidade, por vocação / Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo / Nem com o limite de coisa alguma / Tenho fome e sede de tudo, / Implacável / Crescente ./ Talvez seja esta a minha diferença de Deus / Que tem fome e sede de mim, / Implacável ,/ Crescente,/Eterna /- De mim que me desprezo e me acredito um nada."
Quando morre, no Rio de Janeiro em 1934, aos 33 anos, deixa uma obra que seria mantida na semi-obscuridade até 1965, quando Murilo Mendes, quebrando a promessa feita ao amigo de não publicar suas obras, as inclui na VIII Bienal de São Paulo, mesmo sendo Nery praticamente desconhecido. A partir daí, seus quadros e seu nome começam a adquirir fama. Na X Bienal, já tendo peças e exposições disputados por colecionadores e galerias de arte, as obras de Ismael voltam a encantar expectadores na Sala de Arte Fantástica, Magia e Surrealismo.
Foram inúmeras as exposições feitas sobre o artista, que ganhou status de expoente da arte brasileira, desde que saiu do ostracismo. Além das Bienais de São Paulo, a Retrospectiva de Ismael Nery, em 1966, no Rio de Janeiro e a Retrospectiva Ismael Nery - 50 Anos Depois, em 1984, no MAC-USP foram de grande importância. Em junho de 2000, O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) realizou uma retrospectiva comemorativa do centenário do artista, Ismael Nery: A Poética de um Mito.
Uma possível explicação para a grande estima que o público nutre pela obra de Nery atualmente, pode estar na postura extremamente humana que adotava tanto em sua arte como em sua vida. Ele voltou-se para o indivíduo e teve uma grande compreensão de sua solidão, sua alegria e de seus anseios. O trecho a seguir foi extraído do poema "Eu", feito pouco antes de sua morte. "Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo / Quase como todo o mundo."

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