Aquarelas de Thomas Ender

Há 186 anos o pintor Thomas Ender desembarcou no Brasil, na Missão Austríaca que veio com a Arquiduquesa Leopoldina. Incluído na lista dos pintores viajantes, o artista permaneceu no Brasil apenas 10 meses, mas conseguiu produzir cerca de 780 aquarelas, entre iconografias do Rio de Janeiro, Teresópolis, imagens de São Paulo e Minas Gerais. Sua obra constitui um valioso acervo documental e artístico da época de transição entre o período colonial e o Primeiro Reinado.
Com apenas 23 anos e a tarefa de documentar a iconografia do Novo Mundo, que tanto despertava curiosidade na Europa naqueles idos do século XIX, Thomas Ender chegou ao Brasil na Missão Austríaca que trazia a Arquiduquesa Leopoldina para conhecer seu noivo Pedro. Este foi o primeiro trabalho profissional do jovem Thomas, realizado numa época em que o paisagismo em aquarelas sobre papel nem era incluído no ramo das artes plásticas.
Nascido no ano de 1793, na cidade de Spittelberg, na Áustria, Thomas Ender estudou na Academia de Belas Artes de Viena. Seu precoce talento rendeu-lhe diversos prêmios e a oportunidade de viagem à América, junto com a Missão chefiada pelo Barão de Langsdorff, que trouxe Johann Von Spix e Carl Von Martius, dois dos maiores pesquisadores da fauna e flora brasileira. Foram três meses dentro da fragata "Áustria" até a chegada à Baía de Guanabara. Antes mesmo de desembarcar, Thomas Ender fez suas primeiras aquarelas descrevendo a vista que tinha do navio - um panorama de 360º da Baia e uma série de planos-detalhe de cada parte da paisagem - impressionado com tamanha beleza.




 Portal de entrada do Palácio Real de São Cristóvão

Apesar de ter permanecido no Brasil por apenas 10 meses, e por isso incluído na lista dos pintores viajantes, Ender produziu cerca de 780 aquarelas, entre iconografias do Rio de Janeiro, Teresópolis, imagens produzidas da cidade de São Paulo a partir da Serra da Estrela. Nesta época, a maior capital do país ainda podia ser vista inteira do alto da Serra. Houve ainda uma visita a Vila Rica, em Minas Gerais, que inspirou algumas obras de Ender, mas as dificuldades em se viajar pelo Brasil naqueles tempos tornavam um suplício qualquer excursão. De acordo com as aquarelas, tanto Rio quanto São Paulo eram, a grosso modo, povoados rurais se comparados às grandes cidades européias.

Rio Antigo





Igreja de N. S. do Carmmo da Lapa, que sobrevive em meio aos arranha-céus do Centro do Rio


Mesmo depois das mudanças radicais impostas pela expansão imobiliária, inúmeros prédios públicos, ruas, igrejas e aspectos naturais do Rio ainda permanecem quase intactos, apesar de inseridos em um novo contexto, e podem ser vistos, hoje em dia, tal como eram no primeiro quartel do século XIX. É o caso do Outeiro da Glória, Arcos da Lapa, a Cascatinha da Floresta da Tijuca, onde viveu Nicolas Taunay, os portões do Palácio Real de São Cristóvão e de cartões-postais conhecidos no mundo inteiro, como Pão de Açúcar e a Enseada de Botafogo, cujos aterros não modificaram muito o aspecto original.
Thomas Ender era muito detalhista, tudo era registrado minuciosamente, anotava até a distância que percorria para chegar a determinado local. Trabalhava freneticamente e não media esforços para encontrar o melhor ponto de observação. No pouco tempo que aqui esteve, escalou o Corcovado algumas vezes, subindo os 704 metros acompanhado dos cientistas Martius e Spix.
O dia a dia da cidade não escapou aos olhos atentos do aquarelista. Sempre muito crítico, fez diversos trabalhos sobre a escravidão, retratando o comércio de escravos e os maus-tratos sofridos pelos negros. Em sua obra também havia lugar para a crônica ilustrativa do cotidiano, o vai e vem das ruas do centro, o trabalho dos artesãos e vendedores ambulantes, os animais nas esquinas, as lavadeiras e quantos outros personagens coubessem. Felizmente ou infelizmente, tudo isso foi para a Europa na primeira leva de amostras de material sobre o Novo Mundo.


Enseada de Botafogo


Thomas Ender adoeceu gravemente devido a um ritmo muito intenso de trabalho. Em determinada ocasião, recolheu-se a casa do Barão de Langsdorff, na subida da serra de Teresópolis, atual município de Magé, mas isso não foi suficiente para que ele se recuperasse totalmente. Voltou para a Áustria em 1818, no mesmo navio em que veio. Junto com ele seguiu a primeira remessa de animais, vegetais, objetos etnográficos e coisas do Brasil que foram acomodadas em 36 caixotes e enviadas à Áustria. O imperador Francisco I e a corte austríaca ficaram tão entusiasmados com as novidades, que um imóvel foi alugado no centro de Viena, exclusivamente para instalar um museu brasileiro, o Brasilianum. Tal interesse diminuiu um pouco com a morte da Princesa Leopoldina em 1825, precocemente, aos 26 anos de idade, mas a instituição foi, por quinze anos, centro de referência sobre o Brasil naquele país.
Na Áustria, Thomas Ender deu continuidade a sua carreira e obteve bastante êxito e chegou a ser professor titular da Academia de Belas Artes de Viena. Na Europa sua obra brasileira é equiparada em importância à de Debret, mas Ender demorou a colher os frutos de sua viagem. Somente vinte anos após ter retornado à Viena é que o aquarelista conseguiu - depois de muita insistência - receber o pagamento pelo trabalho. O descaso do Imperador Ferdinando em relação à remuneração não se estendeu, felizmente, ao acervo. Com o fechamento do Brasilianum, tudo foi transferido para o Gabinete de História Natural do Palácio de Schönnbrun e depois para a Academia de Belas Artes.  Devido à fragilidade e antiguidade do material das aquarelas, as paisagens brasileiras foram vistas poucas vezes em exposições na cidade de Viena, mas todo o acervo de Thomas Ender permanece preservado até hoje.

O Brasil dos viajantes
Na época em que Thomas Ender esteve no Brasil eram muito comuns as expedições de viajantes estrangeiros para o Brasil. A sede da Coroa Portuguesa havia se transferido para a colônia por causa do Bloqueio Continental de Napoleão Bonaparte e isso atraía ainda mais a curiosidade dos europeus pelo Novo Mundo e também muitos navios em missão diplomática. Essas comitivas traziam muitos artistas para registrarem em pintura ou aquarela tudo aquilo que fosse visto por aqui, afinal, esse trabalho de documentação ainda não podia ser feito com a ajuda da fotografia.
No mesmo período estiveram no Brasil Debret, Taunay, Rugendas, Johann Grim, Augustus Earle, William Smith, entre tantos outros que, impressionados com toda beleza natural das Américas, fizeram de suas obras um verdadeiro arquivo exclusivamente dedicado ao Brasil, retratando paisagens, aspectos pitorescos e retratando os tipos que viviam aqui durante a colônia e o Primeiro Reinado.
Em 2001 foi lançado o livro "Viagens ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender", fruto de um trabalho bastante completo sobre a obra e a vida do artista. Pesquisadores fizeram viagens à Áustria para fotografar toda a coleção de aquarelas, reproduzidas numa publicação de três volumes que traz ainda um panorama da vida social no Rio de Janeiro do século XIX e uma pequena biografia da Princesa Leopoldina, amante das ciências e artes plásticas, que trouxe a missão científica de Langsdorff em sua comitiva. A tiragem foi de apenas quatro mil exemplares e metade desses livros foi doada pelos patrocinadores do projeto a museus, instituições ligadas à cultura, bibliotecas e universidades.

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