Jackson Pollock: entre Robert Smithson e Allan Kaprow

Por Tatiana Martins




O debate proposto por Robert Smithson, artista americano da Land Art, acerca do inorgânico coloca em reformulação o entendimento da noção de orgânico - termo que perpassa teoria, produção artística e história da arte. Da produção artística, leva-se em conta que, em determinados materiais, a fluidez não pode ser controlada: "Líquido [tinta] não delimita, nunca se move no reverso." (frase do catálogo: Formless: a user's guide, organizado pelos críticos Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois.) Para a geração que se segue, não era fácil ou natural escapar à composição orgânica do all-over de Pollock, todavia, desse dito limite orgânico sobressai um indício de entropia cuja sensibilidade material e subversão do lugar da tela se apresentam pela horizontalidade. No momento do lançamento da tinta, tem-se a vaga ideia do lugar da matéria, a orquestração é o ato do artista Jackson Pollock: "Quando estou no meu quadro, não tenho consciência do que estou fazendo. Só depois de uma espécie de período de 'conhecimento' é que vejo o que estive fazendo. Não tenho medo de destruir a imagem, etc., porque o quadro tem vida própria. Procuro deixar que esse mistério se revele." (Palavras de Pollock para Hans Namuth e Paul Falkenberg no filme Jackson Pollock de 1951).

A tinta espargida, jogada, gotejada, fluida, naturalmente remete à organicidade, quer dizer, o processo necessário e vocação poética do artista expressionista americano para evidenciação do espaço da tela como traços da movimentação do binômio corpo e mundo. Não obstante, Smithson não apresenta o problema de modo que caracterize uma espécie de debate entre orgânico e inorgânico. Ele aplica a composição orgânica, seguindo sua dialética entrópica, para revelar o inorgânico - a dialética, proposta como movimento operacional e imaginário do artista, pressupõe pares que se diluirão na entropia. Seguindo essa lógica, o fator inorgânico não pode se configurar sem o impulso orgânico, ambos, agregados por fim à região do panorama zero - solo fictício de produção de arte, portanto, carregado de potencialidades. O paradoxo que muitas vezes acompanha as concepções do artista se faz presente também no modo como descreve o orgânico: ora, uma característica da emotividade em arte, ora, pulsão para o inorgânico. O artista, procurando combater o sentido "natural" propagado pelo fazer arte tal como concebido naquele momento, invade o circuito-arte para depois invertê-lo. Nas séries de trabalhos em que são evidenciados escoamentos e derretimentos, tal como Asphalt Rundown, de1969, em que grande quantidade de asfalto, concreto, lama ou cola escorreram do topo da montanha de uma paisagem abandonada em Roma. Pode-se ponderar o desafio de Smithson à essência do ato de pintar.




Jackson Pollock por Helena Namuth, 1950



Jackson Pollock por Hans Namuth, 1950



Allan Kaprow, Yard, 1961



Robert Samithson, Cement Flow, 1969



O trabalho é parcialmente visível por meio fotográfico. O efeito desejado pelo artista reverbera materialidade. Pensa-se no derramamento da pintura do Expressionismo abstrato que aparenta ser, por vezes, extensões da larga escala e do gesto heroico associados às telas de Jackson Pollock. O desvio, movimento da atropia, reside na desconstrução da prática ao enfatizar como a essencialidade entrópica da natureza do ato de derramar difere do gesto individualista da pintura. A implicação dos 'escoamentos' de Smithson não passou despercebida pelo circuito artístico americano. Recentemente, por exemplo, Frank Stella notou que Asphalt Rundown era percebido como uma potência, aniquilação do gesto que forçou artistas a reconsiderarem a função do toque e da superfície da pintura.

Colocado desse modo, a reformulação do gesto e a tentativa de suprimir a ação são indicativos do desdobramento do medium pintura em outros meios. A desorientação do circuito artístico conduzida por Smithson releva o entrelace das esferas específicas - já apresentado por outros artistas certamente. Porém, o ponto de contato que Smithson estabelece com Pollock reafirma o campo ampliado (termo cunhado por Rosalind Krauss para designar a produção pós-minimalista) da pintura supondo a horizontalidade - certamente não restringida ao suporte - como lugar para a eclosão do fazer arte. Em suma, a ação de Pollock desdobrada, aberta e estendida.

A reflexão acerca do alcance da pintura de Pollock, tendo em vista seu modo de operação, surge talvez pela primeira vez com Allan Kaprow - artista americano e um dos criadores dos Happenings - que escreve um belíssimo tributo ao pintor no artigo “O Legado de Jackson Pollock”, de 1958, dois anos após sua trágica morte num acidente de carro.



                          Robert Smithson, Asphalt on eroded cliff, 1969



                     Robert Smithson, Asphalt Rundown, 1969 (Roma)



O texto é intenso, misto de lamento e esperança, e a proposição do sublime por vir. O frescor legado pelo expressionista abstrato é reconhecido pela geração posterior - significando, quem sabe, o desligamento do discurso crítico e a vinculação de gerações através da percepção das obras por elas mesmas. Desse modo, as inserções dos artistas no circuito tornam-se dispersas e descentralizadas, tendendo aos desvios e táticas. O artista passa a agenciador que reúne e apresenta aspectos da arte que se voltam para o interior e para as sedimentações do mundo exterior.

Kaprow sugere que a tragicidade da "morte no auge": "(...) era para muitos, segundo penso, algo implícito em seu trabalho, antes de sua morte." (Allan Kaprow. O legado de Jackson Pollock.) Entre a positividade da crítica dita formalista e a tendência a certo descrédito da pintura como esfera autotélica, Kaprow situa a produção e a vida de Jackson Pollock como o grande fracasso da Nova Arte, mas, certamente, trata-se de uma acepção poética, pois, continua assim: "A sua posição heroica tinha sido algo em vão. Em vez de levar à liberdade que prometia a princípio, ela não só causou uma perda de poder e possivelmente a desilusão em relação a Pollock, mas também nos fez ver que não havia solução." (Allan Kaprow. O legado de Jackson Pollock.)

Todavia, tal impasse não se dá porque a pintura de Pollock havia se esgotado, pelo contrário, ela permite uma abertura no circuito artístico do qual estava excluída a crítica formalista por sua tendência em reverter a pintura num único termo: planaridade. Segue Kaprow em suas reflexões: "Não penetramos numa pintura de Pollock por qualquer lugar (ou por cem lugares). Parte alguma é toda parte, e nós imergimos e emergimos quando e onde podemos. Essa descoberta levou às observações de que sua arte dá a impressão de desdobrar-se eternamente - uma intuição verdadeira, que sugere o quanto Pollock ignorou o confinamento do campo retangular em favor de um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente, para além das dimensões literais de qualquer trabalho." (Allan Kaprow. O legado de Jackson Pollock.)

Generosa compreensão da obra de Pollock: a fluidez do artigo acompanha o ritmo pictórico de Pollock. A sensibilidade de Allan Kaprow oferece à obra de Pollock um redirecionamento reflexivo para uma toda geração de artistas que surge no lastro de produção do pintor do expressionismo abstrato. O discurso crítico modernista evita avaliar as produções que aparentemente não se definem a partir de determinado parâmetro, então, nesse momento, o descompasso entre crítica e produção começa a se tornar evidente. A técnica de Pollock - lançar, pisar na tinta, orquestrar, expandir para além das extremidades da tela -, ela mesma fluida, penetrante, contribui para a deformação, isto é, a descaracterização dos meios de arte. A indistinção entre pintura e escultura, entre paisagem e arquitetura, entre outras assimilações, seria o sintoma da necessidade de reformulação poética. E a poética contemporânea poderia assim circular e pulsar na medida em que os acontecimentos eclodissem. A outra configuração cultural deve, de certo modo, tributo à extensão das superfícies das telas de Pollock, indício da adoção da escala que passa a ser inserida como desmedida da obra; tal grandeza talvez tenha despertado, nos artistas e nos espectadores, o sentimento do sublime. Recuperar a atualidade do moderno em Pollock seria, talvez, dissociar os limites da arte e trazer para ela abertura - condição das recriações e reformulações.

O legado de Jackson Pollock explicita a sensibilidade de um período artístico que busca compreender a dimensão da esfera da pintura. Não se procurava legitimar o colapso do suporte da tela ou estabelecer uma cronologia modernista. A compreensão e a assimilação das telas do pintor do expressionismo abstrato se colocam também como ato. Na atualidade da arte, o fazer prevalece como orientação e a partir dele surgem os fluxos de pensamentos. A evidente continuidade entre arte e pensamento prolifera poeticamente entre os artistas. As palavras ganham contorno reflexivo, estético sobretudo. Em Smithson, a certeza da materialidade das palavras ganha corpo e se instala deflagrando pequenas operações em sua produção. O verbo encobre o mundo, a arte pondera com a matéria. Alargadas, então, as perspectivas, é possível multiplicar os nós poéticos que sustentam a nova composição cultural. Junto à crítica, os artistas aderem à polifonia e passam a interferir diretamente no circuito. Daí, a experiência da arte se conduz através de outra experiência e assim por diante. Possivelmente, esse movimento circulatório expande as mediações da arte.

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