"O primeiro sentimento de que me lembro é quando estava num berço e a primeira coisa que vi foi uma caixa que estava próxima ... o mundo se ofereceu a mim sob a aparência da uma caixa."
"A Grande Família" - 1963
"A Reprodução Proibida" ou "O Retrato de Edward James" - 1937
Entre 1916 e 1920, Magritte freqüentou o curso de pintura na Academia de Belas Artes de Bruxelas. Ainda em Bruxelas, reencontrou Georgette, sua primeira namorada e com ela se casou, em 1922. Sua vida sempre transcorreu longe do glamour do mundo artístico. Escolheu morar no subúrbio, e aí construir um estilo de vida que sempre confundiu seus críticos. Tímido, retraído, vestia-se como um funcionário público, sempre de terno e gravata e chapéu côco, até quando passeava com seus dois Loulous da Pomerania. Sua casa era tipicamente pequeno-burguesa, decorada com porcelanas sobre cômoda e bibelots sobre a chaminé. Durante anos seu atelier foi a sala de jantar de sua casa. Em nenhum momento de sua vida ele procurou chamar a atenção da midia sobre si. Sem dúvida, Magritte foi um dos artistas mais desconcertantes do século XX, principalmente considerando sua adesão ao surrealismo e sua inclusão no grupo fechado de André Breton. Tendo passado pelo cubismo e futurismo, Magritte foi profundamente afetado pela pintura metafísica de Giorgio de Chirico: os grandes espaços, onde a arquitetura figura como elemento que destaca o vazio existencial, a angústia. Nas telas de Chirico, Magritte encontrou a densidade do espaço num universo desumanizado. Mas, da mesma forma que agiria mais adiante com o grupo surrealista de Paris, Magritte nunca seguiu nenhum mestre.
"Princípio do Prazer" - 1937
Com Magritte estamos longe daquele "desregramento de todos os sentidos", recomendado por Rimbaud. Na sua pintura há intelecto, há familiaridade com o enigma. E, mais importante que tudo, há a presença da questão humana. A pintura de Magritte nos introduz a um instante privilegiado onde a natureza parece nos revelar um dos seus mistérios. O pintor sempre recusou admitir que sua obra "exprimisse" qualquer sentido, particularmente o que se convencionou chamar de "mistério do mundo". Para ele, o que justificava a pintura em si mesma era ela participar desse mistério, ser deste tão somente um aspecto.
"Um quadro deve ser fulgurante", assim pensava Magritte. Quando a obra está terminada ela se constitui em surpresa para seu autor. Em lugar do artista procurar um efeito sempre mais espetacular, imprevisto, ele deveria desejar despertar no espectador a intuição do enigma. Na linguagem simbólica da arte, um objeto sempre esconde outro. A imagem magritteana propõe o mistério, sugere associações que fazem surgir idéias inesperadas. A obra de arte deve confundir, provocar e criar tensões que abalem as fronteiras entre sonho e realidade.
"Castelo nos Pirineus" - 1959
A imagem nas telas de Magritte nos leva para dentro do mundo conhecido, mas aí surge como surpresa, enigma, espanto. Magritte talvez seja o artista que melhor nos permite entender o valor da imagem para a teoria do Inconsciente, na Psicanálise. Considerando que o Inconsciente, definido por Freud como o psíquico em si, se revela como linguagem, a fala se mostra como ato que surpreende e ultrapassa a intenção de quem fala. Em outras palavras, o sujeito sempre diz mais do que pretende e, ao falar, revela sua verdade. Aqui se insere a questão da imagem, que está na origem da constituição do eu e cuja metáfora é o espelho.
"Espírito de Aventura" - 1962
Desde o momento em que a criança se identifica com sua imagem no espelho ela está capturada irremediavelmente pela imagem de si, que é um outro. A sua subjetividade é constituída por algo fora de si, ou seja, corresponde ao imaginário, no qual estamos alienados. O estádio do espelho, como esse processo de identificação é teoricamente conhecido, insere o homem numa relação de identidade e antagonismo com essa imagem especular que é, simultaneamente, o eu e um outro. Essa alienação inaugural determina uma fixação: capturado pela imagem, eu me torno imagem. O narcisismo, estabelecido pelo estádio do espelho, introduz para sempre no sujeito a experiência de se ver dividido, permanentemente um outro. Assim, o eu aparece como uma desordem de identificações imaginárias. Estamos inscritos no mundo como imagem e o espelho tanto nos captura quanto nos lembra que a imagem especular não passa de um efeito, é simulacro.
“Creio que o melhor título de um quadro é um título poético [...] Um título compatível com a emoção mais ou menos viva que sentimos ao olhar para um quadro [...] O título poético não nos ensina nada, mas deve surpreender-nos e encantar-nos.”
A Reprodução Proibida, por exemplo, é uma daquelas obras onde Magritte usa da simplificação do efeito para criar a atmosfera da ficção. O quadro nos lembra Alice através do Espelho, de Charles Lutwidge Dogson, conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll: ao passar através do espelho, Alice encontra um mundo, só em aparência, parecido com o nosso. Do outro lado, no entanto, todas as coisas funcionavam ao contrário. Por exemplo, para seguir em frente, na direção daquilo que era uma montanha, ela deveria voltar, dar meia volta, e caminhar na direção oposta. Magritte nos instala na situação de espectadores privilegiados: podemos ver o personagem diante do espelho e ele ainda continuar através do espelho, tal qual Alice. O surpreendente acontece bem diante dos nossos olhos: o espelho continua a refletir o que está a sua frente, como o livro de filosofia sobre o aparador da lareira, mas não reflete o rosto do personagem.
Em A Reprodução Proibida, Magritte nos ajuda a entender a reflexão de Lacan: "Se um homem que se crê um rei é louco, um rei que se crê um rei não o é menos". O jogo do reflexo, que sustenta a identidade narcísica, é abandonado. Agora, o espelho está a serviço da desconstrução do tabernáculo do eu. O quadro propõe o desmantelamento do grande sintoma da neurose, sugere a escapada do sujeito da prisão imaginária. Um simples deslocamento permite a Magritte por a imagem a serviço do deslizamento de sentido, instala a desordem bem ali onde a estrutura pretende se formar.
"Os Amantes" - 1928
Não posso deixar de considerar que acabo de fazer algo que deixaria Magritte profundamente aborrecido. Foi ele quem disse: "Meu quadros são válidos na medida em que eles não se prestam à análise." Ele se recusava a considerar que sua obra pudesse explorar as profundezas do inconsciente e achava de profundo mau gosto quando alguém sugeria que suas imagens tinham conteúdo onírico. Para ele, "os sonhos são uma doença do pensamento, fáceis de esquecer". Magritte considerava que o mundo no qual vivemos é um mistério permanente. Designar esse mistério como Deus é apenas uma maneira de falar, nada acrescenta a sua compreensão. Esse mistério é igualmente incognoscível, nem os recursos da razão podem transformá-lo em objeto da ciência. Em outras palavras, nem a religião, nem a ciência são capazes de alcançá-lo ou explicá-lo. Só em alguns breves momentos de inspiração, o homem pode, através da "poesia" ou daquilo que ele chamava de "pensamento absoluto" experimentar uma certa afinidade com o mistério. "Na minha pintura, um pássaro é um pássaro. E uma garrafa é uma garrafa, não um símbolo de um útero". Magritte, que gostava de pensar que um objeto pode ocultar outro, nos induz a considerar que o objeto atrás do objeto visível poderia nos dar a chave para compreender o objeto visível, o que nos leva à metáfora, ao símbolo, à interpretação.
Por Rosângela de Araujo Ainbinder
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