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René Magritte: O Mistério do Mundo

"O primeiro sentimento de que me lembro é quando estava num berço e a primeira coisa que vi foi uma caixa que estava próxima ... o mundo se ofereceu a mim sob a aparência da uma caixa."

"A Grande Família" - 1963


 René-François-Ghislain Magritte nasceu em 21 de novembro de 1898, em Lessines, na província belga de Hainaut. Sua mãe era modista e seu pai, corretor de imóveis. No início de sua adolescência, quando Magritte tinha 13 anos, um acontecimento trágico o marcaria tão profundamente que suas marcas seriam visíveis ao longo de sua obra: na noite de 24 de fevereiro de 1912, sem ser notada, sua mãe saiu à noite de casa e se jogou no rio Sambra. Quando, no dia seguinte, seu corpo foi retirado das águas, apenas seu rosto estava coberto pelo tecido branco da camisola. Assim, é comum vermos em algumas de suas obras personagens com o rosto ou o corpo cobertos por panos brancos, como A Invenção da Vida, Os Amantes, A História Central, todos os três do ano de 1928. Há ainda aquelas obras onde Magritte retoma o episódio da morte da mãe desdobrando-o em imagens que ora acusam, ora fantasiam, ora evocam o luto, a perda: O Assassino Ameaçado, Os Cúmplices do Mágico, Pensamentos de um Caminhante Solitário, os três do ano de 1926.


"A Reprodução Proibida" ou "O Retrato de Edward James" - 1937

 Entre 1916 e 1920, Magritte freqüentou o curso de pintura na Academia de Belas Artes de Bruxelas. Ainda em Bruxelas, reencontrou Georgette, sua primeira namorada e com ela se casou, em 1922. Sua vida sempre transcorreu longe do glamour do mundo artístico. Escolheu morar no subúrbio, e aí construir um estilo de vida que sempre confundiu seus críticos. Tímido, retraído, vestia-se como um funcionário público, sempre de terno e gravata e chapéu côco, até quando passeava com seus dois Loulous da Pomerania. Sua casa era tipicamente pequeno-burguesa, decorada com porcelanas sobre cômoda e bibelots sobre a chaminé. Durante anos seu atelier foi a sala de jantar de sua casa. Em nenhum momento de sua vida ele procurou chamar a atenção da midia sobre si. Sem dúvida, Magritte foi um dos artistas mais desconcertantes do século XX, principalmente considerando sua adesão ao surrealismo e sua inclusão no grupo fechado de André Breton.


Tendo passado pelo cubismo e futurismo, Magritte foi profundamente afetado pela pintura metafísica de Giorgio de Chirico: os grandes espaços, onde a arquitetura figura como elemento que destaca o vazio existencial, a angústia. Nas telas de Chirico, Magritte encontrou a densidade do espaço num universo desumanizado. Mas, da mesma forma que agiria mais adiante com o grupo surrealista de Paris, Magritte nunca seguiu nenhum mestre.

"Princípio do Prazer" - 1937

Ele traçou um caminho independente, para além das questões teóricas propostas por Breton, apesar de permanecer visceralmente ligado ao surrealismo.


Com Magritte estamos longe daquele "desregramento de todos os sentidos", recomendado por Rimbaud. Na sua pintura há intelecto, há familiaridade com o enigma. E, mais importante que tudo, há a presença da questão humana. A pintura de Magritte nos introduz a um instante privilegiado onde a natureza parece nos revelar um dos seus mistérios. O pintor sempre recusou admitir que sua obra "exprimisse" qualquer sentido, particularmente o que se convencionou chamar de "mistério do mundo". Para ele, o que justificava a pintura em si mesma era ela participar desse mistério, ser deste tão somente um aspecto.


"Um quadro deve ser fulgurante", assim pensava Magritte. Quando a obra está terminada ela se constitui em surpresa para seu autor. Em lugar do artista procurar um efeito sempre mais espetacular, imprevisto, ele deveria desejar despertar no espectador a intuição do enigma. Na linguagem simbólica da arte, um objeto sempre esconde outro. A imagem magritteana propõe o mistério, sugere associações que fazem surgir idéias inesperadas. A obra de arte deve confundir, provocar e criar tensões que abalem as fronteiras entre sonho e realidade.

 "Castelo nos Pirineus" - 1959

 Magritte reinventa o espaço pictórico e usa a tridimensionalidade virtual da perspectiva para nos levar para dentro de cenários onde contemplamos a simplificação máxima dos efeitos, ao mesmo tempo em que apreciamos seu repertório extremamente simples de elementos. O que encanta em seus quadros é que neles não entra a perturbação do mundo, e o olhar está a serviço da imagem que desconcerta, que desloca a ordem do mundo sem chocar. Há um certo prazer do artista em nos colocar diante do absurdo, construído com impecável lógica. Alguns de seus quadros lembram os paradoxos de Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, que imaginou histórias como a de Aquiles e a Tartaruga para provar que o pensamento armado de lógica pode criar absurdos: o famoso corredor Aquiles aposta uma corrida com a tartaruga e, como pode correr duas vezes mais que ela, ele lhe dá uma grande dianteira. Zenão, então, diz que, no momento em que Aquiles alcança o ponto de partida da tartaruga, ela terá se movido para frente metade da distância de sua dianteira. Portanto, no momento em que Aquiles chegar a esse ponto, ela terá se movido metade dessa distância, e assim por diante, ad infinitum. Assim, logicamente, Aquiles nunca consegue alcançar a tartaruga porque, a cada ponto, no momento em que ele tiver coberto a distância entre os dois, ela estará sempre adiantada em metade dessa distância. É claro que Aquiles ultrapassa a tartaruga! Zenão sabia disso, mas estava criando um argumento lógico com o qual ele queria desconcertar nossas tentativas de raciocinar acerca do mundo que nos rodeia.


A imagem nas telas de Magritte nos leva para dentro do mundo conhecido, mas aí surge como surpresa, enigma, espanto. Magritte talvez seja o artista que melhor nos permite entender o valor da imagem para a teoria do Inconsciente, na Psicanálise. Considerando que o Inconsciente, definido por Freud como o psíquico em si, se revela como linguagem, a fala se mostra como ato que surpreende e ultrapassa a intenção de quem fala. Em outras palavras, o sujeito sempre diz mais do que pretende e, ao falar, revela sua verdade. Aqui se insere a questão da imagem, que está na origem da constituição do eu e cuja metáfora é o espelho.

"Espírito de Aventura" - 1962


Desde o momento em que a criança se identifica com sua imagem no espelho ela está capturada irremediavelmente pela imagem de si, que é um outro. A sua subjetividade é constituída por algo fora de si, ou seja, corresponde ao imaginário, no qual estamos alienados. O estádio do espelho, como esse processo de identificação é teoricamente conhecido, insere o homem numa relação de identidade e antagonismo com essa imagem especular que é, simultaneamente, o eu e um outro. Essa alienação inaugural determina uma fixação: capturado pela imagem, eu me torno imagem. O narcisismo, estabelecido pelo estádio do espelho, introduz para sempre no sujeito a experiência de se ver dividido, permanentemente um outro. Assim, o eu aparece como uma desordem de identificações imaginárias. Estamos inscritos no mundo como imagem e o espelho tanto nos captura quanto nos lembra que a imagem especular não passa de um efeito, é simulacro.


“Creio que o melhor título de um quadro é um título poético [...] Um título compatível com a emoção mais ou menos viva que sentimos ao olhar para um quadro [...] O título poético não nos ensina nada, mas deve surpreender-nos e encantar-nos.”

 A Reprodução Proibida, por exemplo, é uma daquelas obras onde Magritte usa da simplificação do efeito para criar a atmosfera da ficção. O quadro nos lembra Alice através do Espelho, de Charles Lutwidge Dogson, conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll: ao passar através do espelho, Alice encontra um mundo, só em aparência, parecido com o nosso. Do outro lado, no entanto, todas as coisas funcionavam ao contrário. Por exemplo, para seguir em frente, na direção daquilo que era uma montanha, ela deveria voltar, dar meia volta, e caminhar na direção oposta. Magritte nos instala na situação de espectadores privilegiados: podemos ver o personagem diante do espelho e ele ainda continuar através do espelho, tal qual Alice. O surpreendente acontece bem diante dos nossos olhos: o espelho continua a refletir o que está a sua frente, como o livro de filosofia sobre o aparador da lareira, mas não reflete o rosto do personagem.

 Em A Reprodução Proibida, Magritte nos ajuda a entender a reflexão de Lacan: "Se um homem que se crê um rei é louco, um rei que se crê um rei não o é menos". O jogo do reflexo, que sustenta a identidade narcísica, é abandonado. Agora, o espelho está a serviço da desconstrução do tabernáculo do eu. O quadro propõe o desmantelamento do grande sintoma da neurose, sugere a escapada do sujeito da prisão imaginária. Um simples deslocamento permite a Magritte por a imagem a serviço do deslizamento de sentido, instala a desordem bem ali onde a estrutura pretende se formar.


"Os Amantes" - 1928

 Não posso deixar de considerar que acabo de fazer algo que deixaria Magritte profundamente aborrecido. Foi ele quem disse: "Meu quadros são válidos na medida em que eles não se prestam à análise." Ele se recusava a considerar que sua obra pudesse explorar as profundezas do inconsciente e achava de profundo mau gosto quando alguém sugeria que suas imagens tinham conteúdo onírico. Para ele, "os sonhos são uma doença do pensamento, fáceis de esquecer".


Magritte considerava que o mundo no qual vivemos é um mistério permanente. Designar esse mistério como Deus é apenas uma maneira de falar, nada acrescenta a sua compreensão. Esse mistério é igualmente incognoscível, nem os recursos da razão podem transformá-lo em objeto da ciência. Em outras palavras, nem a religião, nem a ciência são capazes de alcançá-lo ou explicá-lo. Só em alguns breves momentos de inspiração, o homem pode, através da "poesia" ou daquilo que ele chamava de "pensamento absoluto" experimentar uma certa afinidade com o mistério. "Na minha pintura, um pássaro é um pássaro. E uma garrafa é uma garrafa, não um símbolo de um útero". Magritte, que gostava de pensar que um objeto pode ocultar outro, nos induz a considerar que o objeto atrás do objeto visível poderia nos dar a chave para compreender o objeto visível, o que nos leva à metáfora, ao símbolo, à interpretação.




Por Rosângela de Araujo Ainbinder

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