Escola Guignard

“O processo desta Escola é contrário ao do detestavelmente acadêmico que consiste em jogar ao certo e, assim ganhar a vida”. Em poucas palavras, Mario de Andrade (1893-1945) negou a realidade acadêmica enraizada no ensino do século 20 para dar luz à Escola Guignard. Em 1943, ano da fundação, chamava-se Escola de Belas Artes. Candido Portinari (1903-1962), o pintor brasileiro de mais de cinco mil obras, sentenciou: “Esta é a melhor Escola de Arte do Brasil”.

Guignard pintando

O ‘novo’ era o adjetivo que se adequava às artes desde a Semana de 22. Nomes como Tarsila de Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, com a caravana modernista, haviam estado em Minas Gerais em busca da antropofágica brasilidade. Na ânsia de fazer da capital uma metrópole concreta no campo das artes, o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, depois de conversar com o arquiteto Oscar Niemeyer, em 1942, não hesitou na certeza da indicação para o comando do projeto, Alberto da Veiga Guignard, residente do Rio de Janeiro. A carioca Edith Bhering e o austríaco Franz Weissmann constituíram, junto a Guignard, a primeira equipe de professores que formaram muitos dos principais artistas brasileiros como Almícar de Castro (1920-2002), Arlinda Correa Lima (1927-1980), Farsene de Andrade (1926-1996), Mary Vieira (1920-2001), Solange Botelho, Vicente Abreu (1926-1987) e Wilde Lacerda (1929-1996).

O impulso que não descansava a mente de Kubitscheck repousava de forma plena em Guignard. Sessenta e cinco anos após a convenção da parceria, percebe-se que a tentativa de retorno ao novo cambaleia e decai sobre a presente personalidade de quem o propôs: o próprio Guignard. Em revolução inconsciente, o ensino das artes plásticas “virou as costas” a qualquer reflexo de ortodoxia da sociedade conservadora para se concentrar na pureza da arte sem pretensionismo. “O academicismo exigia que o aprendiz, para ser um artista, tinha que passar por um longo processo de maturação técnica e intelectual. Quando ele ia expor, já tinha dedicado grande parte da sua vida ao trabalho de aprendizado. Depois, o artista acadêmico ainda se tornava um refém do mecenas, tinha que dobrar o seu conceito estético em função da encomenda”, conta Antonio de Paiva Moura, professor aposentado de história da arte e diretor da instituição de 1969 a 1972.

Inspirado em ideias modernistas, Guignard admitiu a libertação do artista frente às amarras acadêmicas vigentes, as quais, segundo Moura, consistiam em verdadeiros cânones da arte. O ensinamento era: menor técnica, menos cópia e mais criação. “A escola era uma ponte do indivíduo com a sociedade. Era ali que as pessoas se encontravam, conversavam sobre arte. O amadurecimento intelectual e técnico ia aparecendo nessa convivência”, diz Antonio Moura, autor do livro Memória Histórica da Escola Guignard.

“Se você quiser desenhar bonitinho, procure uma escola de quadrinhos. Se você quiser aprender técnica, procure nos livros. Aqui se dá valor ao estudo individual, ao ateliê”, afirma Sebastião Miguel que, em 31 anos de contato estreito e intenso, passou de aluno a professor quando, em 2008, assumiu o posto de vice-presidente da instituição. Sebastião tinha 19 anos em 1978, quando chegou como aluno na Guignard. Veio do Sul de Minas e queria ser artista. Imaginava-se de boina, andando pelas ruas de Paris, bebendo vinho... Esbarrou-se de frente com as manifestações pró-contracultura dos anos 1970. “A arte não pertence a essa coisa romântica. Um artista só se torna completo se ele está inteiro em seu contexto social”, explica.

O cenário encontrado por Sebastião estava inflamado pelas manifestações políticas. A placidez plástica cedeu espaço para a contestação performática, apregoada por artistas como Cildo Meirelles, Hélio Oiticica e Arthur Barrio. Ele relembra, por exemplo, as pranchas de sangue e as trouxas embrulhadas em carne jogadas no ribeirão próximo à escola, uma analogia ao sumiço das pessoas no período da ditadura. A obra era Trouxa Ensangüentada (1970), de Arthur Barrio. “Quem via, pensava que era gente, coisa de polícia, do DOPS, tinha toda essa provocação social”, relembra.

Vaso com Flores, 1932 - ost 101 x 81 cm

ESCOLA

Eram cerca de 120 alunos matriculados em 1970 e poucos passavam despercebidos em criação. “Mais da metade da participação e premiação de artistas mineiros em salões, bienais e outros eventos – nacionais e internacionais – era de artistas ligados à Escola Guignard”, balanceia Antonio Moura. Ainda hoje, com 700 alunos, é notória a interferência no meio. Segundo o historiador, 50% dos mineiros em eventos de arte pertencem ou pertenceram à Escola.

Nada a contestar, vendo o rol de professores e um exemplo já basta, Amílcar de Castro. Enquanto terminava a faculdade de Direito da UFMG, em 1945, frequentava a Guignard. De 1944 a 1950, foi aluno do trio Guignard-Weissman-Bhering; depois, mudou-se para o Rio de Janeiro e atuou como diagramador em boa parte da imprensa brasileira: Revista Manchete, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Última Hora, Estado de Minas, Jornal da Tarde e Província do Pará. De 1974 a 1977, o homem da escultura em aço dirigiu a escola e lecionou a disciplina de expressão bi-tridimensional. Aluno na época, Sebastião relembra: “Ele mandou pegarmos papeis brancos de 20x20 cm. Depois, papeis pretos. Jogava no furador e davam aqueles círculos. Na outra semana, duas bolinhas, até achar o lugar ou a forma legal. Se você dissesse que ficou pronto, ele perguntava o porquê. Ele sempre trabalhou os conceitos na pratica, ao invés dos livros”.

No livro Almícar de Castro – Circuito Atelier (1999), sobre a experiência como professor, o concretista é categórico: “Lecionar é muito bom, o difícil é que as escolas têm um currículo. As escolas são simpáticas e interessantes, mas o sistema não força os alunos a fazer coisas, não o provoca, ele fica repetindo coisas há dez anos. Estão um pouco atrasados no sentido geral e não existe nenhuma proposta de pensar, de descobrir”.

A escola de arte não queria ser técnica, sustentava-se na essência de um espírito que hoje permanece intrínseco e veio do artista Guignard. Um dos legados transcendeu gerações, como o desenho no lápis 2H (lápis duro), cujo traço é muito difícil de apagar ou corrigir. A erudição no campo das outras artes também se impunha como tradição. No Palacete das Artes, onde a escola ficou de 1950 a 1965, os alunos, sob conselho de Guignard e demais professores, mantinham o contato íntimo com orquestras, balés, coros e a escola de teatro.

Sob a sensibilidade de Guignard, nomes anônimos afloravam como artistas. Foi o que aconteceu com Wilde Lacerda (1929-1996). Moura conta que Guignard avistou um lanterneiro trabalhando o pára-lama de um carro e autodespertou-se ao pendor artístico que ali encontrara. Convidou-o para a Escola, era Wilde. “Ele foi um grande escultor, sabia muito bem trabalhar com sucata. E, assim, todas as pessoas que procuravam a escola tinham abrigo”, relembra Moura.

Guignard - auto retrato

CENTRO DE MEMORIA

O desejo de apresentar ao público os vestígios da passagem de Guignard na Escola e na arte brasileira mobilizou ações particulares em prol do bem público, ate desembocar, oficialmente, em 14 de abril de 2009, no Centro de Memória da Escola Guignard. Das mil peças reunidas pela idealizadora do projeto, Zenir Amorim, 64, a maioria ressurgiu por doações de ex-alunos como Franz Weissman, Amílcar de Castro, Yara Tupynambá, Álvaro Apocalypse, etc. Zenir começou as pesquisas e a elaboração do projeto em 2004. Em 2005, foi aprovado pelo Ministério da Cultura. Porém, a restauração de todo acervo dependia de patrocínio, conquistado em 2007. Cerca de 20 pessoas faziam parte da equipe, da coordenação à montagem da exposição. Para Zenir, a iniciativa da exposição presenteia pesquisadores, admiradores, jornalistas e sociedade com um conteúdo público. “Um acervo valioso que revela muito do homem, do artista Guignard e do Mestre, cuja atuação na Escola contribuiu para a formação de expoentes da arte brasileira, influenciou gerações de artistas e revolucionou a forma de pensar e fazer a arte em Minas Gerais”.

ARQUITETURA E ARTE

Em 1974 a Escola passou a ser administrada pelo Estado e foi dividida em dois cursos: Artes Plásticas e Educação Artística. Através da promoção das oficinas de educação artística nas cidades-polos, em parceria com a Secretaria Estadual da Educação, a Fundação Escola Guignard adquiriu recursos para a construção da sede. Rodeada pelas serras mineiras da região Sul de Belo Horizonte – visão insaciável de Guignard, apaixonado pelas montanhas e pela natureza – localizava-se a então nova sede da Escola Guignard, finalizada em 1994.

Gustavo Penna era o nome para o projeto. Representar o tempo a partir da solidez da massa, construída pelo contorno de moldes pré-elaborados, apeteceu o arquiteto. A partir da experiência, a criação da Escola de Arte e Ofício de Contagem, da qual Amílcar de Castro era professor particular, surgiu o convite, também de Amílcar, para fundação do projeto da Escola Guignard. Algo diferente, firmado nas premissas construídas e cunhadas pelo artista-mentor – falecido em 1962 – erigido em estímulo, provocações e induções de como pensar a arte.

“O que Guignard queria? Pintar as montanhas. Então, a Escola sobe as montanhas e fica do alto, o que ele gostava, contemplação da distância, em um espaço neutro”, diz Gustavo. Por isso, muito espaço em branco e privilégio do vazio. A linha reta que delimita o edifício de ferro não funciona como limite, incentiva a liberdade e a inteiração, características clássicas de Guignard. Na escola-oficina, um andar é destinado à pintura; outro, a esculturas tridimensionais. Os trabalhos com ferros, cerâmica, pedra, ficam no subterrâneo. A socialização acontece na biblioteca, no espaço de convivência ou na praça que, segundo Penna, é o espaço do vazio. “Não tem nada, nenhuma obra de arte ali. É um lugar para ver o longe que está longe ou que esta dentro de si. Porque tem longe que mora dentro da gente, não é?”, tensiona. Detalhes inundados de simbolismos permeiam cada traço, do mínimo ao macro. Gustavo Penna fala da vertigem da arte, um salto no vazio sem cordas nem páraquedas, para encontrar algo no final. Em arte, trata-se da própria criação. Em observações longínquas, Guignard talvez abraçasse essa teoria.

Por Tatiana Dourado, jornalista

*Publicada na revista Conceito AV

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