Antigas origens do “Direito Divino dos Reis”

Da antiguidade oriental à ascensão do cristianismo na Idade Média européia
Por Geovani Németh-Torres

Neste artigo, buscaremos mostrar brevemente alguns exemplos de legitimação divina dos reis na Antigüidade até a vitória do Cristianismo como religião predominante na Europa na Alta Idade Média, e de que maneira os imperadores e reis usavam disso para se legitimarem.
Desde tempos imemoriais, quando os homens começaram a se reunir em grupos com objetivos comuns, foi preciso estabelecer um mínimo de organização para a comunidade atingir suas metas. Destas organizações políticas primitivas, após milênios surgiram os Estados. “Em toda sociedade é necessário que alguns de seus membros tenham um poder de mando e um poder de coerção já que os objetivos propostos não podem ser obtidos pela colaboração espontânea de seus integrantes, então se explica a necessidade de que alguns governem.” (SÁNCHEZ, Ricardo Hormazábal. 2005, pp. 90-91).
Geralmente, governo ou governantes conseguem se manter tranqüilos, longe de muitas atribulações, ao possuírem, simultaneamente, a autoridade e a potestade. Do contrário, vale a afirmativa do filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662), “a autoridade sem a força é impotente, e sem a legitimidade moral é tirania” [Ibidem, p. 93]. Na primeira, o governo não conseguiria cumprir seu papel; na segunda, o governante opressor estaria à mercê de levantes e insurreições. Para evitar estes infortúnios, o bom governo só deve utilizar seu poder se possuir a devida autoridade para tal. A maneira de adquirir esta autoridade para exercer o poder pode diferenciar teocracias (autoridade vinda de um poder divino), despotados (autoridade conquistada pela coerção) ou democracias (autoridade partilhada pelos cidadãos).
Na Antigüidade eram comuns os reis serem cultuados como figuras divinas ou sendo considerados filhos dos deuses, como nas civilizações egípcia e da Mesopotâmia. E mesmo na Grécia e em Roma, muitas famílias importantes diziam ter uma origem divina ou dos heróis mitológicos da Guerra de Tróia. O ditador Caio Júlio César (100-44 a.C.), por exemplo, afirmou que a família Júlia descendia da deusa Vênus (SUETÔNIO. 2005, p. 16). Até mesmo no Século XX encontramos resquícios deste modo de legitimidade, com os Negusa Negest (“imperadores”) da Etiópia que clamavam descender do rei Salomão (c. 1000-931 a.C.) e os Tenno (líderes supremos do povo japonês, que traduzimos erradamente como “imperador”), herdeiros da divindade Amaterasu.
Na Europa, esta prática também existia e permaneceu, de certo modo, até a difusão do Cristianismo. Por exemplo, os altos-reis britânicos alegavam originarem-se de Brutos, herói troiano que imigrou para a ilha, a qual passou ter seu nome, (Grã) Bretanha. Celtas irlandeses, povos germânicos e escandinavos também seguiam modelo semelhante, buscando no passado remoto e nas mitologias suas origens e dos poderes do governante.
Porém, diferente de dizer-se um monarca de origem divina ou mitológica, é defender que seu título é legitimado pela vontade de um deus. Neste sentido, vale citar uma forma variante dessa legitimação, o modelo tradicional chinês conhecido como Tianming, “o Mandato dos Céus”, em que os Wang (reis) – depois Huang Ti (“imperadores”) – governavam com a bênção celestial, e assim permaneciam enquanto possuíssem a aprovação dos Céus. Inundações, fome, peste ou insurreições vitoriosas eram sinais que os monarcas perderam esta aprovação, e o Mandato deveria ir para outra pessoa. Aliás, foi assim que surgiu esta concepção, quando os Shang (Séculos XVIII ao XI a.C.) – que atribuíam seus poderes à sua ancestralidade divina – foram derrubados pela dinastia Zhou (Séculos XI ao III a.C.), os quais justificaram a mudança dinástica como ordem do Céu [SCHAFER, E. H. 1973, pp.178-188].
Outra civilização antiga que desenvolveu o modelo de legitimação divina foi a persa. A fonte mais antiga conhecida, datada do reinado de Dario I, o Grande (521-485 a.C.) é a monumental “Inscrição de Behistun”, localizada na estrada que ligava as cidades de Babilônia e Ecbatana, respectivamente capitais da Babilônia e Média. Nela, encontra-se escrito em persa antigo, acadiano e elamita: “Rei Dario diz: Pela Graça de Ahura Mazda eu sou rei; Ahura Mazda garantiu-me o reino”. [LENDERING, Jona].
A tradição oriental de ligar o governante a algum tipo de divindade chegou à Roma do Século III d.C., num primeiro instante com o imperador Heliogábalo (218-222), que introduziu o culto solar. Cinqüenta anos depois, Aureliano (270-275) transforma a adoração do Sol em religião do Império, na qual
o Imperador passou então a ser a imagem e a epifania do Sol Invictus. Era o nimbo emanado do sol que lhe conferia uma graça sobrenatural; e se ele deixava ao sol o título de ‘Senhor do Império Romano’, ainda assim pôde reivindicar para si não só o título de Senhor (dominus) como também o de Deus (deus). [TÔRRES, Moisés Romanazzi].
Este “nimbo” era representado como um halo, geralmente ao redor da cabeça. Até então, em Roma, apenas os deuses eram figurados desta maneira. No século seguinte, o Cristianismo torna-se a religião oficial do Império e os halos continuaram presentes, principalmente nas iconografias bizantinas, nas representações de Cristo, dos santos e dos imperadores.
A divinização do poder imperial, como comenta Francisco José Gomes [1979, pp. 38-39], não obteve êxito, em parte pela resistência que os cristãos lhe haviam oferecido. Deste modo, buscaram uma nova legitimação da sua autoridade em termos cristãos. O imperador não era mais um deus de glória sobre a terra, e sim a imagem visível do Deus invisível, do senhorio de Cristo (Kyrios). O poder imperial tornava-se a imagem da monarquia divina.
O aspecto político da ascensão do Cristianismo foi a transformação do princípio de um poder imperial teocrático (dominus et deus), helenístico, numa perspectiva hierocrática, a do representante terreno de Cristo (vicarius Christi), que constituía de fato o exercício do poder e da autoridade divinas por meio da pessoa do imperador. [TÔRRES, Moisés Romanazzi.].
Contudo, com a queda do Império Romano Ocidental, logo a influência do bispo de Roma – hoje o chamamos comumente de “papa” – iria ocupar um lugar de destaque para os novos reinos romano-germânicos cristianizados, num processo que durou alguns séculos. E era preciso deixar bem visível as distinções das esferas de influência do Papado, do Império e dos diversos reinos cristãos existentes. Foi no início da Idade Média Ocidental, que o papa São Gelásio I (492-496), em carta de 494 ao imperador oriental Anastácio I (491-518), propõe pela primeira vez uma “fórmula” para fazer coexistir os dois princípios: a auctoritas – dos pontífices – era entendida como um poder moral fundado no direito; e a potestas – dos imperadores – era o poder de fato, de administração das coisas e pessoas. São Gelásio I afirma ainda a subordinação da potestas em relação à auctoritas:
“Augustíssimo imperador, este mundo é governado particularmente por dois: a sagrada autoridade dos pontífices e o poder real (auctoritas sacrata pontificum et regalis potestas). Destes, a autoridade sacerdotal é tanto mais importante enquanto tem de dar conta dos mesmos reis dos homens ante o tribunal divino. Pois, há de saber, clementíssimo filho, que, ainda que tenhas o primeiro lugar em dignidade sobre a raça humana, contudo tem que se submeter (submittis) com devoção aos que têm a seu cargo as coisas divinas, e buscar neles os meios de tua salvação (...)”. [BLANCO, Enrique Gallego].
O Império Bizantino permaneceu por quase mil após a queda do Império Romano Ocidental, em 476. Por sua vez, o Ocidente assistiu à edificação de vários reinos, originados dos povos germânicos: os francos, saxões, suevos, vândalos, visigodos, etc. Poucas são as informações que temos das concepções de realeza nestes reinos. Contudo, por muito tempo ainda, seus chefes mantiveram a tradicional reverência ao Império de Constantinopla, como aponta P. D. King.
Paralelamente, ocorria um irreversível processo de cristianização da Europa, e estes reinos romano-germânicos logo abandonariam as crenças pagãs. A Igreja se tornaria a única unidade subsistente no Ocidente. Por outro lado, havia duas correntes dogmáticas cristológicas, os credos niceno e ariano, que divergiam sobre a consubstancialidade entre Jesus e Deus, que os arianos eram contrários. Império e Igreja seguiam o dogma niceno (do Concílio de Nicéia, em 325), mas os reis romano-germânicos cristãos eram todos adeptos do arianismo.
No final do Século V, o rei franco Clóvis (481-511) sobrepuja vários inimigos e torna-se hegemônico em grande parte da Gália. Fomenta uma aliança com a Igreja franca, após sua conversão e batismo, feito pelo arcebispo Remígio (ou São Rémi, 437-533) em Reims, no Natal de 496. (Observemos que a data de 496 é tradicional; outros estudos sugerem que o batismo deva ter ocorrido em 498 ou 499. Porém em algumas fontes citam ainda o ano de 506 para este evento). A partir desta forte aliança, sendo ele o único monarca niceno – além do imperador de Constantinopla – inaugura assim um processo de expansão e evangelização, que a partir de então caminhariam lado a lado. Foi assim que conquistou o sudoeste da Gália, após atender um pedido de ajuda feito pelos bispos nicenos do reino visigótico, contra o arianismo dos ocupantes da região de Toulouse.
Como maneira de dar um aspecto miraculoso e de superioridade em relação aos outros reis quanto ao batismo de Clóvis, no Século IX, Hincmar (806-882), – também arcebispo de Reims – na hagiografia de São Remígio, escreve que na ocasião faltava o óleo carismático para ungir o rei, e este veio do Céu trazido numa âmpula por uma pomba. A Santa Âmpula, carregada de valor simbólico, foi uma das poucas relíquias que escaparam à destruição na Revolução Francesa, e ainda se encontra na Catedral de Reims. Foi usada nas coroações dos monarcas franceses, de Filipe I Augusto (1180) a Carlos X (1824), que assim invocavam a lenda do antigo rei franco [KURTH, Godefroid].

Este artigo mostra algumas maneiras de como o poder real era confundido ou unido ao poder religioso em várias civilizações da Antigüidade, quando reis eram deuses ou semi-deuses. Obviamente, todos os casos citados merecem estudos mais aprofundados.
Em seguida, passamos para um segundo tipo de legitimação divina, a que invoca um poder divino como fonte do poder real. Buscamos o caso específico do período do Baixo Império Romano e a sua permanência Idade Média Ocidental à dentro, melhor vista no caso franco, quando monarcas num primeiro momento dividiam a influência com a Igreja, para depois buscar nela seu poder legitimatório. Embora nossa abordagem tenha sido apenas superficial, convidamos o leitor, no caso de desejar mais informações a respeito, a conferir abaixo algumas fontes em que poderá encontrar estudos mais aprofundados nas questões levantadas.
• REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BIBIANE, Daniela; TÔRRES, Moisés Romanazzi. A Evolução Política da Alta Idade Média na Europa Ocidental: Da Pluraridade dos Reinos Romano-Germânicos à Unidade Carolíngia. Brathair 2 (1), 2002, p. 7. .
BLANCO, Enrique Gallego. Relaciones entre la Iglesia y el Estado en la Edad Media. Madrid: Ediciones Castilla, 1973, p. 83. Apud: TÔRRES, Moisés Romanazzi. op. cit., 2003, pp. 77-78.
GOMES, Francisco José. A Igreja e o Poder: Representações e Discursos. In: RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros (org.). A Vida na Idade Média. Brasília: EdUNB, 1979, pp. 38-39. Apud: TÔRRES, Moisés Romanazzi. op. cit., 2003, p. 27.
KING, P. D. King. Les Royaumes Barbares. In: BURNS, James Henderson (Org.). Historie de la Pensée Politique Médiévale. Paris: PUF, 1995, pp. 118-148. Apud: TÔRRES, op. cit., 2003, pp. 56-57; ______, op. cit., 2004, pp. 87-88.
KURTH, Godefroid. Clovis. In: The Catholic Encyclopedia. Vol. IV. New York: Robert Appleton Company, 1908. Disponível em: .
LENDERING, Jona. The Behistun Inscription. Livius.org.
Disponível em: .
SÁNCHEZ, Ricardo Hormazábal. Manual de Retorica, Oratoria y Liderazgo Democratico. Santiago: Universidad de Chile, 2005. 204 p.
SCHAFER, Edward H. Capítulo 4: Soberanos do Céu. In: China Antiga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. 191 p. (Coleção Biblioteca de História Universal Life).
SUETÔNIO. A Vida dos doze Césares. São Paulo: Martin Claret, 2005. 450.
TÔRRES, Moisés Romanazzi. O Conceito de Império em Marsílio de Pádua. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. 386 p. (Tese de Doutorado).
TÔRRES, Moisés Romanazzi.O Sentido Religioso da Noção Germânica de Império. Brathair 4 (1), 2004, p. 83. .
NÉMETH-TORRES, Geovani. Antigas Origens do "Direito Divino dos Reis": Da Antigüidade Oriental à Ascensão do Cristianismo na Idade Média Européia. In: Correio Imperial. Belo Horizonte: v. 95, pp.8-12. 01 set. 2007. Homepage: http://br.groups.yahoo.com/group/correioimperial.

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