Robert Smithson: dimensões da arte

Por Tatiana Martins*

Através do espaço, o universo me compreende e me engole como um ponto:
através do pensamento, eu o compreendo.
Pascal

E assim, marcho para a noite de estilhaços/ Onde submirjo. Sobrevieram devastações/ Mal os pássaros acordavam, quando tudo/ Transmudou-se em frágua vertical, depois ruiu/ Poeira e pedra no descambo caçando Sísifo/ Solerte adubação, solo propenso a iras.
T. S. Eliot.

Voz marcante de sua geração, o artista americano Robert Smithson passou o curto tempo de sua démarche em intensa atividade. Smithson colocava-se no centro das discussões nos campos crítico e artístico atuando como um nó entre as questões correntes, centro nervoso dos fios condutores das poéticas do fim dos anos 60 e início dos 70. O diálogo era recorrente entre os artistas desta geração, não havia mais a conformação homogênea da sucessão modernista de arte. O circuito artístico sofreu um deslocamento produtivo que recolocava novos espaço e circulação dos trabalhos. Existia um problema direto com o espaço - real e metafórico - dos museus e das galerias que impulsionava os artistas em busca do outro lugar. Alguns artistas se voltaram para a natureza vislumbrando seus recursos físicos como possibilidades plásticas. Importavam, para os artistas da Land Art, o processo transformador dos elementos naturais e o engajamento físico do artista. Confirmavam-se a tomada da palavra pelos artistas contra a crítica de arte e contra o circuito artístico daquele período; o problema da história da arte que enfrentava a impossibilidade de uma narrativa modernista; o deslocamento das noções de espaço, campo perceptivo e corpo com as produções iniciais da Minimal Art - o minimalismo performático. Pode-se afirmar que Smithson vivendo todas essas questões procurou redefinir práticas e parâmetros dos meios artísticos, chegando mesmo a ampliar o sentido da história da arte e da produção artística e recolocar o papel do artista.
No entrecruzamento das proposições que se davam naquele momento, Smithson multiplicava suas ações, direcionando-as para o signo do real e literal com suas potencialidades latentes - apostando em bifurcações e em entrepostos dos sentidos produzidos como processos confiáveis. Os trabalhos aparecem muitas vezes relacionados e apóiam-se numa noção de passagem ou caminhos percorridos. Procura revelar o aspecto móvel do deslocamento. A relação com o mundo real e externo dividia sua importância com o universo privado e imaginativo do artista. Munido dessas premissas, Smithson apresentava suas idéias por camadas adotando a forma e a tessitura profundas das formações geológicas. O espaço do real agiganta-se, ganha dimensão cósmica, em correlato, o espaço da imaginação aprofunda-se no magma terrestre. Pelos desdobramentos poéticos do artista atravessa uma noção cartográfica que amplia o espaço de trabalho. A escala passa a ser compreendida em latitudes, longitudes e meridianos. São linhas que envolvem o mundo, esquadrinham o ambiente e estabelecem a ligação entre real e virtual, entre mundo e imaginação. Para Smithson, o tamanho pode determinar um objeto, mas para determinar a arte somente a dimensão da escala. O artista adota os termos da mensuração física do universo - distância, peso, força, gravidade - para relacioná-los ao campo perceptivo e estético do homem. A experiência estética fundamenta-se numa temporalidade cósmica que se desdobra infinitamente. Para o profundo subterrâneo da terra ou para o ar rarefeito das altitudes máximas existe um correlato imaginativo. Os elementos primordiais do universo têm como característica a mutabilidade. São as reações químicas e físicas - típica dos processos naturais - que chamam a atenção do artista. O contato com a matéria - dimensão - física da terra desperta em Smithson a consciência para o que são tempo e natureza reconhecendo sobretudo o abismo entre as relações naturais e humanas.
Os trabalhos de Smithson aparentam entretecer a materialidade pura e o imaginário físico e orgânico. Tratados como ferramentas de trabalho, o material e o imaginário trespassam a inteligibilidade da produção. Podemos tratar de uma imaginação material, pensada pelo filósofo francês Gaston Bachelard, oposta à imaginação formal e abstrata. Bachelard inverte a qualidade das experiências que de positiva passa à estética. Sem buscar chegar a fundo na objetividade, a proposta de Bachelard estabelece a estrutura subjetiva das imagens materiais . Seguindo essa tese, a imaginação que trabalha com materiais reais, inconscientes e móveis transforma-se em imaginação criadora deixando de lado seus aspectos reprodutor e repetidor. Na criação das imagens pela imaginação criadora, busca-se então afirmar o caráter primitivo, base psíquica e fundamental desta.
Nota-se entre os artistas da Land Art o uso profícuo de arquétipos. Gilles Tiberghien relaciona um tipo bem caro aos artistas que trabalhavam diretamente no espaço externo: o arquétipo arquitetural e labiríntico. No artigo Cabanas , Tiberghien reconhece a noção de imaginação material de Bachelard na produção da Land Art. Experimentar arquétipo como a Cabana ou mesmo o seu oposto, o Labirinto reverte-se em viver a natureza. O arcaísmo dos arquétipos sugere uma natureza imaginada, criadora, portanto. Existe um recorrente envio ao arcaico que subsiste no sentimento de perda da natureza que caracterizava a modernidade de uma maneira geral.
O imaginário de Smithson, situado entre real e virtual, fundamenta-se no sentimento do remoto de regiões longínquas, devastadas e ermas - natureza. Capta as ondas temporais, localiza-se no desabitado - tempo. Toda forma da natureza informe é de seu interesse. Pensa um tempo-espaço úmido ou seco. Reconhece como matéria-prima a potência telúrica. As forças naturais e informes co-habitam a psiquê deste artista.
Seus atos recolocavam-se quase sempre fundamentados por duas noções principais que perpassavam sua poética: a entropia e a dialética site/non site. Aparentemente antitéticas estas noções colocavam-se como pontos flexíveis e móveis que se desenrolavam pela produção do artista apresentando uma idéia de através. A exclusão da idéia de antítese se dá na medida em que pares opostos operam pela continuidade.
stas correntes poéticas (a entropia e o par site/non-site) aponta o caráter informal (entrópico) desta produção: uma se apresenta pela outra. Enfim, enclausurados num instante efêmero, sem revelarem-se em pólos opostos, a entropia e o recorte preciso e pontual do par site/non-site entrelaçam-se infinitamente.
Na contemporaneidade, dilatando os limites do moderno , os artistas da Land Art, especificamente Robert Smithson, trataram a matéria natureza em sua literalidade - sua substanciação e transubstanciação. Natureza, que em seu processo transformador, possibilita a mutação da matéria e o deslocamento físico, retoma seus elementos colocando-os em lugares determinados, nos quais o dado transformador - paisagem - afirma-se como fruto do simples e poderoso acaso, da sua causalidade intrínseca. O resultado do cruzamento das diversas mudanças naturais e sociais reflete a idéia de paisagem. A natureza no que agrega uma realidade mental e apresenta o mundo físico recebe o atributo paisagem. Projeto que aciona a relatividade do tempo, num continum entre passagem do tempo e espacialização do agora. Funciona como realidade estética condicionada pelo fazer humano. Pela paisagem pode-se perceber um mundo que pulsa num ritmo diferente, um outro. O homem se insere diretamente na natureza através da paisagem. Nela, inscreve-se a história de acordo com Gilles Tiberghien: "Le paysage dans son épaisseur temporelle cristalissa des déterminants qui relèvent autant de l'analyse morale, économique, géographique, qu'esthétique. Espace vécu et perçu" . Constitui-se então, a paisagem, pela projeção dos artistas e poetas que se valem da dimensão imaginária e sensível. Traz em si o valor da abstração e do artifício.
A paisagem surge como central no debate cultural. Os artistas não a enfrentam, esbarram num conjunto contaminado de simbolismos. A paisagem é concebida tanto pela percepção do indivíduo quanto pelas representações coletivas. A forma da paisagem, em Smithson, ganha uma re-significação ao expor uma visão materialista e dialógica, não se tratando, pois, de uma simples visão ou disposição mental, funda-se sobre a realidade da terra, sua literalidade informe que precede o espírito e subsiste materialmente. A paisagem retomada pelo artista funciona a partir da lógica do já ocupado, extraído do domínio humano. Somente o efeito do tempo extenso, num ato de cicatrização (transformação) atenua a violência e a deformidade deste processo dito normal, segundo a lógica de uma modernidade incipiente. A escolha dos sites/non-sites não é aleatória ou ingênua, permeia, em alguns casos, os lugares destruídos e remexidos pela indústria - urbanização descontrolada que se sobrepôs à natureza.
Circulares são o tempo e a natureza na poética de Robert Smithson. A natureza assume, para este artista, a identidade profunda da origem das coisas. Natureza obediente, submissa, rebelde e corrosiva, impõe o ritmo - presença de cada instante único e passado - de sua pulsação. No pulso deste natural, permeiam a temporalidade arcaica e o lugar remoto. Dito deste modo, não parece que exista aqui alguma novidade, mas sob um olhar mais detido pode-se encarar a circularidade tempo/natureza apresentada como instante particular no qual está contida uma espécie de memória (tempo) geológica (natureza) . As formações terrestres da natureza, concebidas a partir da compreensão do tempo bruto, imemorial e alargado, caracterizam-se por um constante e fragmentário aparecimento de reflexos - reprodução de instantes. Robert Smithson traz como matéria, nos aspectos mentais e físicos, o desdobramento do que entende como natureza e tempo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário