Tesouros da Trácia




A Bulgária está situada na parte mais oriental da Península Balcânica. Desde as épocas mais remotas aí se estabeleceram povos de origem e cultura muito diversas. Nestas terras passavam, como se fosse por uma ponte, as ondas de grandes tribos que migravam de um continente para o outro. Até que, por volta do segundo milênio a.C. surgiu um povo que se fixou na parte oriental do país - os trácios, uma gente estranha que acreditava na imortalidade da alma e numa vida que se prolongava além da morte. Seus reis e os mais notáveis das tribos eram, por isso, enterrados em túmulos nos quais se colocavam todas as riquezas que haviam acumulado. E assim os trácios puderam deixar uma lembrança - a de sua arte, em muitos momentos inigualável, por sua originalidade e pelo fim que almejava: a eternidade.

Inúmeros historiadores do mundo antigo escreveram sobre os costumes, os hábitos e a agressividade das tribos que povoaram as partes central e norte da Península Balcânica já nos fins da Idade do Bronze. Segundo os seus vizinhos, os gregos, elas deram origem ao deus do vento, Bóreas, e ao deus da guerra, Ares. No entanto, estas criaturas divinas revelam somente uma parte do espírito trácio, livre e indomável, pois nas suas terras tiveram berço também as Musas e nas suas montanhas cantava o doce Orfeu. Mas deve-se considerar que esses dados sobre a cultura trácia poderiam ter chegado até nós apenas como belas lendas se não tivessem o apoio dos ricos achados que revelaram ao mundo uma arte estranha, excepcional, primitiva, porém de força inigualável.
Se imaginarmos um museu de arte trácia no qual figurem todas as riquezas da terra de Orfeu, veremos em primeiro lugar o tesouro de Valchitran. Seus objetos são elaborados em ouro, com um peso total de mais de doze quilos. Eles têm as formas simples porém nobres dos vasos da época micênica, com ornamentos modestos mas situados nos lugares exatos. É bem provável que estas peças estejam relacionadas com algum culto e que tenham sido utensílios destinados a misturar e conservar diversas poções mágicas. Eles deveriam estar ligados ao culto da grande deusa-mãe, muito difundido entre as tribos da Trácia.
Apesar dessa profusão de ouro, o material mais utilizado na Trácia - como no restante do mundo antigo - era o bronze. Com ele se elaboravam os enfeites, as armas, os utensílios em geral. As formas desses objetos eram simplificadas, e a maioria dos ornamentos composta de figuras geométricas. Encontram-se também com muita frequência, principalmente nos machados de culto, figuras de animais domésticos: bois, carneiros, galos, etc.
Ainda não foram escavadas todas as sepulturas trácias. Pode-se imaginar o que esconde o restante das colinas espalhadas por toda aquela região. Mesmo assim, é possível afirmar que apenas dois países rivalizavam em riqueza com a Trácia: a Pérsia ocidental e a Cítia. E isto não é uma casualidade. Os povos desses países encontravam-se em níveis de desenvolvimento social, político e econômico bastante semelhantes, assim como também eram semelhantes sua religião e sua ideologia. Além disso, mantinham relações diretas, pois os persas passavam constantemente pelo território dos trácios em suas viagens para a Cítia e para a Grécia, e acabaram mais tarde por estabelecer-se definitivamente no país.
Os soberanos trácios e citas estabeleciam entre si casamentos dinásticos, o que, aliás, não os impedia de frequentemente se combaterem. Estes laços, que se aprofundaram com o passar do tempo, acabaram por influir positivamente na arte dos três povos. Foi a Trácia o primeiro país europeu a adotar os estilos artísticos orientais, para mais tarde difundi-los pelos mestres dos outros países bárbaros. E desde tempos imemoriais que as terras búlgaras representavam uma ponte entre o Oriente e o Ocidente, pelo qual passavam inúmeros povos e culturas. Em razão disso, a arte trácia adotou muitos elementos estrangeiros, fixou-os e acabou por torná-los parte de sua tradição. Um exemplo desse fenômeno é o denominado estilo animalesco, tão difundido na arte torêutica (arte de cinzelar, de esculpir em metal, madeira ou marfim) da Trácia. O leão, o grifo, o touro foram aí introduzidos graças aos contatos com a arte persa. E os paralelos entre a torêutica trácia e a cita são ainda mais evidentes, levando alguns pesquisadores a considerarem a arte trácia como uma variante local da arte dos citas.
Mas a Trácia não possuía fronteiras somente com a Pérsia e a Cítia. Ao sul ela tinha como vizinha a Grécia, que por volta do século V a.C. havia assumido a hegemonia cultural do mundo, a ponto de criar entre helenos e bárbaros uma divisão que expressava bem mais uma diferença cultural do que étnica. Mas os altivos gregos gostavam de comerciar com os ricos bárbaros, com os quais trocavam o seu trigo, produtos alimentícios e couro por objetos como enfeites, armas e utensílios. Mas esse intercâmbio não se ateve somente ao comércio. Muitos mestres gregos trabalharam para soberanos trácios, adaptando o estilo clássico grego ao gosto oriental de seus clientes.
Peitilho de ouro do século V a.C. encontrado no Grande Túmulo de Duvanli
Os melhores exemplos encontrados hoje são os dos tesouros de Russe e Panaguiurishte. Sobre os vasos de Russe vemos os mistérios da figura de Dionísio, a quem toda a antiguidade aceitava como um deus trácio. À primeira vista o mestre mantinha-se fiel às formas antigas, mas, diante de um estudo mais detalhado, as figuras se apresentam um pouco mais pesadas, e os seus recursos não são aparentemente muito convincentes no que diz respeito ao ideal clássico de beleza. No entanto, esta beleza encontra-se nos elementos da arte bem mais exigente dos orientais.
De todos esses objetos, o mais belo é a ânfora encontrada em Panaguiurishte. Por sua forma, ela pode ser considerada um dos vasos mais raros existentes em todo o mundo. Apesar de em sua elaboração se sentir claramente a habilidade de um artista helênico, sua forma é tipicamente persa e representa a continuação de uma velha tradição aquemênida. Todos os vasos conhecidos que possuem esse formato e têm duas aberturas no fundo são originários da Ásia Menor.
Tendências artísticas semelhantes às existentes nos tesouros de Russe e de Panaguiurishte encontram-se, também, no tesouro de Letnitza, que sem dúvida alguma é obra do artesanato trácio e data da mesma época que os dois citados anteriormente, isto é, fins do século III a.C. Sua elaboração é, no conjunto, bárbara, embora apresente uma série de particularidades que a aproximam da arte da Ásia Menor. A reprodução de todas as figuras reflete as mesmas características de estilo. Os homens são representados com barba e recordam muito as esfinges da arte aquemênida (dinastia persa fundada por Ciro em 550 a.C.) tardia, da metade do século IV a.C. A figura humana, da mesma forma como era vista pelos artistas da Ásia Menor, apresenta-se sempre vestida, já que, em vez de reproduzir as formas do corpo e a musculatura, o mestre prefere ocupar-se dos detalhes do vestuário e do tecido.
Fenômenos idênticos são observados também em objetos mais antigos da arte trácia, como é o caso do peitilho de ouro encontrado no túmulo de Bashov, próximo de Duvanli e que data da segunda metade do século V a.C., bem como de uma série de obras da torêutica grega, tal como uma esfinge de Nica, a mensageira de Zeus, no seu carro, e de uma aplicação em couraça da segunda metade do século V a.C.
A torêutica registrou um grande florescimento principalmente entre os povos da Ásia Menor, e foi da Assíria e da Babilônia que ela se estendeu à Pérsia, de onde passou para a Trácia.
A influência direta da Pérsia sobre a torêutica trácia continuou manifestando-se com maior força inclusive em época posterior. É o caso do tesouro de Nagy Szent Miklos, que, embora atribuído a artistas búlgaros dos séculos IX e X d.C., contém uma série de elementos sassânidas que, em que pese estarem reproduzidos bastante barbarizados, se encontram muito próximos da arte aquemênida, cujas manifestações mais brilhantes datam dos séculos VI e V a.C. Isto não surpreende, pois já os búlgaros pagãos do Vale do Danúbio, bem como outros povos do sul da Rússia, mantiveram acesos os velhos laços que possuíam com os mestres da antiga Pérsia.
Quando se fala dos tesouros descobertos na Bulgária ou a ela ligados, tem-se sempre que levar em conta a torêutica persa, que com sua riqueza e força sempre exerceu enorme influência sobre os povos que habitavam as margens do mar Negro. Estes povos sempre ficaram distantes da arte grega, que, embora se esforçassem para assimilar, era incompreensível para eles. Por isso, estavam sempre mais propensos a aceitar o convencionalismo e o estilo da arte persa.
Outra faceta interessante de examinar nos tesouros da Trácia é a que diz respeito aos adornos. Sua confecção é tradicionalmente atribuída a artistas gregos. Todavia, o problema relacionado ao lugar em que foram elaborados ainda não está totalmente resolvido. Isso se deve ao fato de terem encontrado em várias ilhas gregas adornos semelhantes aos achados nos túmulos de Duvanli e Mezek. Antes da segunda metade do século VI a.C. eram raros os adornos de ouro nas colônias gregas das costas do mar Negro. A partir, porém, da segunda metade do século III a.C., começaram a proliferar as oficinas especializadas na confecção de adornos de ouro. Por essa época surgiram, ao lado dos adornos gregos típicos, constituídos de brincos e anéis, adornos trácios com as mesmas características. Em cada uma das épocas posteriores encontra-se um grande número de adornos em ouro cuja origem não é tão clara. Exemplos disso nos são trazidos pelos tesouros de Nicolaevo - da época romana - e de Varna, que provavelmente tiveram sua origem na própria Trácia. Mais recentemente esses adornos típicos surgem com os dois componentes do povo búlgaro - os eslavos e os protobúlgaros. Mais tarde a eles se juntam também inúmeros adornos de caráter mais variado, como medalhões e ícones cristãos, em cuja criação aparece, com mérito indiscutível, a influência da Bizâncio cristã.
Quando falamos das relações e das influências da arte trácia com as de outras civilizações, não devemos de maneira alguma menosprezá-la por ela não possuir um caráter nacional definido. Antes de tudo o termo nacional, no sentido artístico, não existia naquela época. A arte era um meio de expressar as idéias religiosas ou político-ideológicas e não uma forma de dar dimensão a um espírito nacional.
Se tentarmos descobrir o que, para um nobre trácio, tinha valor numa obra de arte, chegamos a algumas conclusões interessantes. Antes de tudo ela deveria ser feita de um material precioso porque dessa forma demonstrava a riqueza do seu possuidor. O trácio rico tinha uma predileção pelos objetos de ouro, tais como peitilhos, capacetes, pulseiras e anéis. Dessa maneira ele se distinguia dos mais pobres, demonstrava sua origem nobre, sua situação privilegiada. Provavelmente é por essa razão que os trácios nobres eram chamados de dzibitides - brilhantes. Eles brilhavam de tanto ouro que carregavam sobre si. Aqueles que não tinham suficiente riqueza para adquirir objetos de ouro usavam adornos de bronze, mas com um pequeno artifício: mandavam prateá-los, a fim de brilharem tanto quanto os outros.
Os objetos elaborados por hábeis artesãos eram sempre bem acolhidos, mesmo quando não correspondiam totalmente às exigências do cliente, pois se dava bastante importância à perfeição com que uma obra era executada. Devido a isso, os adornos com ornamentos, fossem zoomorfos ou antropomorfos, eram dos mais valorizados. E certamente esses desenhos se encontravam subordinados a uma ideologia específica, pois é bem provável que as imagens apostas num vaso ou numa pulseira trouxessem consigo alguma informação simbolicamente cifrada. E, se até hoje elas ainda não foram decifradas, a culpa não cabe aos mestres antigos. Deduz-se daí que no conceito dos trácios a estética estava diretamente relacionada com as exigências ideológicas e sociais.
De Panaguiurishte, asa de um riton decorada com uma esfinge alada e centauro de decora a asa de uma ânfora. Todas as peças de ouro
Os motivos mais frequentemente encontrados nos objetos dos tesouros trácios são os animais. Muitas vezes representados durante uma luta entre si: é o leão que ataca o veado ou o touro; é o grifo devorando o veado; são dois ursos em posição de combate. Geralmente a posição do animal está combinada com a forma do objeto. Muitas vezes surgem figuras fantásticas, como leões com bico de águia ou veados alados.
Comumente se afirma que o estilo animalesco determina a arte trácia. Mas, na realidade, do ponto de vista artístico as obras mais preciosas são aquelas em que os homens se acham representados. É difícil afirmar se esta última foi uma etapa subseqüente ou contemporânea ao estilo animalesco. O exemplo mais antigo e figura humana é o que se encontra em um cinto datado provavelmente do século V a.C., mas o verdadeiro florescimento do estilo antropomorfo data do século IV a.C., que foi, sem dúvida, a época mais brilhante de toda a arte trácia.
Até os dias atuais, já foram descobertas mais de cem sepulturas onde se encontraram objetos em que aparece a figura humana. Do ponto de vista iconográfico, a imagem quase totalmente dominante é a do cavaleiro-guerreiro-caçador. E quem é esse cavaleiro misterioso que passa cavalgando, através dos séculos, como um símbolo eterno do espírito trácio? Durante a época da dominação de Roma foram dedicados a ele mais de dois mil relevos em mármore. Dele aprendemos o nome - Heros. Mas será este um nome ou simplesmente a palavra herói? Por ser um deus universal, os trácios apelavam para ele em todos os casos, fosse para defender as portas da cidade ou simplesmente para curá-los da mordida de um cão raivoso.
Os trácios criaram uma arte com finalidade. Uma arte que conservou a lembrança de um povo, que, segundo Heródoto, era "o mais numeroso depois do hindu" e que ficou conhecido por sua fé na imortalidade. Por acreditarem na permanência da vida, os trácios levavam consigo para a sepultura suas relíquias mais preciosas. E, em verdade, graças a elas, conseguiram a imortalidade tão desejada. Não, talvez, a espiritual; mas com certeza a cultural. Pois hoje, guardadas em museus, estas relíquias tornaram-se os testemunhos de um povo desaparecido. Mensageiras entre mundos, como Hermes o foi entre o dos deuses e o dos homens; e, como Orfeu, mensageiras do entendimento entre os próprios homens.
Placa retangulare com cenas do cotidiano do homem e da vida selvagem e fantástica dos animais, achadas no tesouro de Letnitza

Fonte: Texto de Ivan Marazov; Fotos: reproduções


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