A Rússia dos Czares

Quem acreditou que a revolução socialista fez desaparecer as tradições russas, estava completamente enganado. Com o fim do comunismo e o advento da república, os primeiros sinais de liberdade trouxeram de volta o país dos czares. Mesmo sem a monarquia ter voltado à Rússia, a nobreza e a Igreja Cristã Ortodoxa renasceram, foram fundadas associações para defender os interesses dos descendentes da realeza e uma escola monarquista revive as tradições do império.

A Rússia, nome dado ao antigo e vasto império dos czares, se estendia do litoral do mar Báltico ao oceano Pacífico e hoje se limita à Federação Russa, depois que a União Soviética acabou em dezembro 1991. Com a liberdade, reapareceu o sentimento convenientemente esquecido durante os anos de chumbo. Uma onda monarquista se espalhou pela nação e aconteceram atos impensáveis no tempo do comunismo, como a venda de livros sobre o império e o resgate da águia de duas cabeças, o símbolo dos czares. A Sociedade de Genealogia procura estabelecer as linhagens dos nobres das famílias russas visando descobrir quem são os verdadeiros descendestes que teriam direito aos títulos de nobreza e a resgatar os bens confiscados pelo governo.
No castelo dos Príncipes Dolgoruki o Museu Marx e Engel teve de abrir espaço para a Assembléia dos Nobres, inicialmente dirigida pelo príncipe Andrei Golisyn, que tem como objetivo reunir todas as pessoas de sangue-azul do país. A associação conta com mais de dois mil membros. Esse movimento conta com a ajuda da Sociedade de Genealogia, que está publicando uma série de vinte volumes com a versão russa do "Quem é quem", continuando um trabalho que era realizado até 1917 e se viu interrompido pela Revolução de Outubro. O projeto é difícil, pois, se antes os descendentes procuravam se esconder, hoje muitos se dizem membros da realeza e poucos documentos restam para comprovar essa nobreza.
Entre os nobres que saíram do anonimato estava Natasha Romanova, tetraneta do Czar Nicolau I, que foi destaque na edição passada de A Relíquia com o seu livro "Jóias do Czar". Ela nasceu em São Petersburgo em 3 de fevereiro de 1917, poucos meses antes da revolução, sendo a única descendente da dinastia Romanov a conseguir sobreviver no país. Natasha, que talvez inspirou a heroína vivida por Scarlett Johansson no filme Homem de Ferro II, tem uma história interessante (leia no box ao lado). Muitos outros descendentes dos czares apareceram, entre eles a princesa Eudoxie Cheremetieva (Cheremetiev é o nome do Aeroporto Internacional de Moscou); Arcadi Lvovich Bougaiev, ou Arcadi I (que diz ser descendente de Gêngis-Khan e dos reis da Polônia), derrotado nas eleições presidenciais de 1991; Nicolau III, que afirmou ser filho de Aléxis, filho do czar e que teria escapado do Massacre de Yekaterinburg, onde em 17 de julho de 1918, a família imperial encontrou a morte. Segundo Nicolau III, o pai teria fugido e se refugiado num mosteiro de Souzdal, adotando o nome Dalsky. Nicolau III já trocou um cetro e uma coroa por um telefone celular e uma pistola de nove milímetros.
Não é difícil descobrir porque existe tanto interesse em comprovar a nobreza. Pertencer à família real pode se tornar um negócio extremamente lucrativo. No início do século passado, a coroa havia fixado a renda anual do filho do czar em 150 mil rublos. Quando chegava à idade adulta, ele recebia um milhão, e mais 235 mil como presente de casamento. Os nobres também negociam com o governo visando reaver as terras e castelos que foram confiscados pelo estado. Grupos monarquistas se formaram por todo o país, e regimentos uniformizados como os cossacos estão presentes nas manifestações nacionalistas. Até uma estátua do czar Nicolau II foi inaugurada na Praça Pushkin, no jardim da Catedral de São Deodoro. Em São Petersburgo, a antiga capital dos czares, os símbolos do movimento monarquista são muito mais visíveis. Os restos mortais da família imperial assassinada foram retirados de uma vala comum, em Yekaterinburg e foram enterrados com pompa na Fortaleza de Pedro e Paulo, onde se encontra uma catedral ortodoxa que recebe centenas de peregrinos. Cerca de 20 por cento da população russa revela tendências nacionalista-monarquistas e acreditam que o poder foi usurpado pelos bolcheviques em 1917 e, uma vez que o comunismo acabou, não haveria problemas em reinstalar novamente a monarquia, a exemplo do que ocorreu em outros países, como na Espanha.

Vista lateral do Palácio de Petershof, residência de inverno dos czares

A Igreja Ortodoxa Russa
As cinzas da dinastia dos poderosos czares estão sob a proteção histórica da milenar igreja ortodoxa russa. Cerca de vinte romanov governaram a Rússia, da coroação de Miguel, em 1613, à morte de Nicolau II, em 1918. O primeiro foi enterrado na Catedral do Kremlin e o último na igreja que guarda os restos mortais de Catarina e de Pedro, o Grande.
Os russos parecem buscar no passado e na religião a chave para o futuro e precisam acreditar em algo. O cristianismo ortodoxo é a resposta para muitos, e ressurgiu com força. Ao dinamitar a Catedral de Cristo Salvador, em 1934, Stalin acreditava que, sem Deus, abriria caminho para as reformas sociais. No lugar do templo, pretendia construir o Palácio dos Soviéticos, que com seus 400 metros de altura dominaria toda a Moscou. Planejava colocar no topo do prédio uma estátua de Lênin ainda maior que a Estátua da Liberdade. O projeto foi abandonado e trocado pela construção de uma piscina. Esta, por sua vez, foi destruída recentemente para dar lugar às fundações da nova catedral.
Stalin errou ao pensar que poderia de uma hora para outra apagar da memória russa uma religião que há mais de dez séculos havia se instalado no país. Contam que ela chegou por volta do ano1000, através do Grão-Príncipe de Kiev, Vladimir, convertido à religião cristã ortodoxa bizantina. Ele convenceu seus súditos a se batizarem, e a pompa dos ritos ortodoxos acabou por difundir-se pela Rússia dos czares. Na verdade, a entrada do cristianismo ortodoxo começara em 969, quando a Princesa-Regente Olga foi a Constantinopla para se batizar, mas não conseguiu introduzir a religião no país, pois seu filho, Sviatoslav foi contra. Anos mais tarde seu sonho foi realizado através do neto e Olga viria a ser canonizada como Santa Helena, nome que receber em seu batismo. Por ordem de Vladimir, a população entrou maciçamente no rio Dniéper para o batismo. Era o início da Rússia católica.
A fundação do mosteiro Kievo-Pecherskaya, em 1501, ajudou a difundir o cristianismo ortodoxo na Rússia. Com a queda de Constantinopla, em 1453, o patriarca, que já havia se transferido para Moscou, declarou o país o centro da Igreja Ortodoxa Cristã. A ligação com os czares se tornou total quando Pedro, o Grande, criou o Sacratíssimo Sínodo, em 1721, que transferia para ela a supremacia na hierarquia eclesiástica, restringindo o poder dos patriarcas. Com Catarina o golpe foi ainda mais forte. Considerando exagerada a riqueza da Igreja, ela confiscou os bens e estabeleceu um salário para os religiosos.
Durante a revolução de 1917, as igrejas e mosteiros foram fechados, e os padres perseguidos. Alguns anos mais tarde, foi possível fazer um balanço de como a mão comunista desceu sobre a religião russa: das 54 mil igrejas, apenas cerca de cem continuavam funcionando. Somente durante a Segunda Guerra Mundial é que a perseguição diminuiu e, por ordem de Stalin, acabou a proibição aos cultos.

São Petersburgo

Complexo do Petershof, residência oficial dos czares em São Petersburgo, vista do rio Neva

A bandeira dos czares tremula novamente no alto do Palácio Puchkine, em São Petersburgo. A águia de duas cabeças, símbolo dos czares, surgiu na frente do prédio do Parlamento. Esse revival monarquista se repete pelo país. A estátua eqüestre de Alexandre III voltou ao seu antigo lugar. É no fim da tarde que se torna mais fácil imaginar todo o esplendor que dominava a Rússia na época dos czares. Grande parte das igrejas e palácios tem cúpulas e adereços na fachada pintados em ouro e, à medida que o sol se põe, a luz produz reflexos dourados que se espalham pelas cidades. Sob esse aspecto, nenhum outro lugar se compara a São Petersburgo, que durante o regime socialista recebeu o nome de Leningrado.
Foi Pedro, o Grande, o responsável pela fundação dessa cidade. Após realizar uma grande viagem Pela Europa, em 1697 e 1698, Pedro voltou impressionado com a arquitetura dos vizinhos. Como Moscou e Kiev eram cidades antigas dominadas pelo estilo bizantino, resolveu fundar uma cidade, uma capital moderna. Assim Surgiu São Petersburgo, em 1703, na foz do Neva, à margem do mar Báltico. Sob a orientação de arquitetos franceses e italianos, foi construída a residência do czar, o Petershof, que cobre uma área de oitocentos hectares. Na verdade, o Petershof é um conglomerado de prédios, espalhados num grande parque. Ele compreende vinte palácios, pavilhões e 144 fontes, onde o dourado se espalha por estátuas, fachadas e interiores. A construção principal - o Grande Palácio - fica no alto da colina, cujo declive foi aproveitado para formar os terraços da Grande Cascata, na frente do prédio. A fachada do Grande Palácio é dividida em blocos, com tetos de formas e alturas diferentes. Em cada extremo, erguem-se capelas, cuja cúpula traz a águia de duas cabeças em dourado. No interior, o dourado se repete, e a decoração é completada por lustres de cristal e estátuas de bronze.
O grande rival em beleza e grandiosidade é o magnífico Palácio de Catarina. Construído por Pushkin, a trinta quilômetros de São Petersburgo, teve seu projeto feito por um dos arquitetos do Petershof: o italiano Bartolomeu Rastrelli. O resultado ao final da construção (de 1752 a 1756) foi uma fachada ainda mais imponente, com trezentos metros de largura, com o azul das paredes contrastando com as colunas brancas. Predominantemente rococó, o palácio tem grinaldas ornamentando as janelas e cariátides, que originalmente eram douradas. No final da ala esquerda, Rastrelli fez uma concessão à arquitetura russa, em especial à moscovita do século XV, com a construção de uma capela com cinco cúpulas douradas. No interior, o destaque é para o salão de baile, de 668 metros, todo em dourado e decorado com espelhos. Ali, a czarina Elisaveta (que governou de 1741 a 1762) dava grandes festas. Mas seria Catarina II, conhecida como Catarina, a Grande, que daria nome ao palácio. Ela foi a responsável pela reforma, que o ampliou, incluindo uma ala em estilo clássico. Foi na época de Catarina que as artes conheceram um dos períodos mais favoráveis na Rússia. Mesmo enfrentando uma guerra contra a Turquia, ela mandou construir um museu - o Hermitage -, que era ligado ao palácio por um tipo de ponte coberta. Ela foi ainda responsável pela compra de numerosas obras de arte européia. Paralelamente o palácio crescia, surgindo salões em âmbar, com mesas em lápis-lazúli. O ponto alto era o quarto de Catarina, com colunas de cristal violeta e paredes revestidas em porcelana branca. Ao lado do palácio, mandou construir um outro para o neto favorito, Alexandre, que viria a ser o Imperador Alexandre I, e ainda mais um para o segundo neto, Constantino, que Catarina esperava um dia ver no trono de Constantinopla.
A suntuosidade encontrada nos palácios dos czares também está presente nas igrejas. Em Zagorsk, a poucos quilômetros de Moscou, se destaca a Catedral da Assunção. Ela tem cinco cúpulas, quatro são azuladas e decoradas com estrelas de dez pontas e a quinta, e maior, fica no centro e é completamente dourada. Sobre ela se elevam cruzes ortodoxas, também pintadas em ouro. A partir de 1995, as igrejas começaram a restauração de seus prédios. Moscou e São Petersburgo pareciam grandes canteiros de obras, com os velhos templos retomando o antigo esplendor. Como os nobres brigam pela posse de títulos e propriedades, a igreja também luta para recuperar seus imóveis. Depois da Perestroika, a Igreja Ortodoxa conseguiu reaver nada menos que dez mil monumentos religiosos. Só não conseguiu retomar as catedrais do Kremlin, contentando-se em celebrar lá, apenas, a Missa da Páscoa.

Fonte: texto de Cristina Azevedo;
Fotos: reproduções/A Relíquia


Natasha Romanova
Tetraneta do czar Nicolau I, Natasha Romanova foi a única descendente da dinastia Romanov a conseguir sobreviver dentro da própria Rússia. Ela nasceu em São Petersburgo em 3 de fevereiro de 1917, quarenta dias antes da abdicação do último czar, Nicolau II, que no ano seguinte seria assassinado junto com sua família. Durante a Revolução, o pai de Natasha se uniu ao Exército Branco, e a derrota o obrigou a sair do país. A mulher e a filha não puderam fugir, e a família nunca mais se reencontrou. "Ele não podia sequer nos escrever, ou nos colocaria em perigo", contou Natasha, afirmando: "Se descobrissem minha verdadeira identidade, isso seria considerado uma afronta que só poderia ser lavada com sangue". Ela e a mãe partiram para Tashkent e depois para Moscou, onde eram realizados menos fuzilamentos do que em São Petersburgo. Em Moscou, conseguiram documentos falsos e uma relativa tranqüilidade. Assim, Natasha Romanova se transformou em Natasha Androssova.
De inimiga do governo, viria a se transformar em heroína. Aos 23 anos, ela entrou para um circo, onde aprendeu a fazer um número em que dirigia uma motocicleta dentro de um cilindro vertical. A artista logo viria a conquistar a admiração de poetas e do próprio Partido Comunista, o que se reforçaria durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa época, ela se ofereceu para dirigir caminhões que levavam mantimentos para os soldados no front. O ato lhe valeu uma condecoração, fazendo com que o governo concedesse, sem saber, uma medalha para uma descendente da família real. No entanto, nem mesmo a condecoração foi capaz de livrar Natasha da denúncia de um ex-namorado. Interrogada, conseguiu contestar a acusação, sair e voltar para o circo, percorrendo toda a antiga União Soviética. Como uma personagem de romance, depois que o regime socialista acabou, a heroína pôde finalmente revelar sua verdadeira identidade, ganhando fama. Após declarar em uma entrevista que seu único desejo era visitar o túmulo do pai, em Nice, ela foi contatada pela revista americana Royalty, que a levou até a França, satisfazendo assim sua vontade.


Para ver mais imagens, acesse o álbum de fotos do Jornal A Relíquia.

Um comentário:

  1. O tópico sobre a última remanescente da família do Czar Nicolau II é bastante controverso. Não foi encontrado o corpo de uma das filhas do Czar.
    Porém, nesse inteirim, para revindicar status e sangue nobre, diversas mulheres se apresentaram a mãe de Nicolau II como sendo sua neta. Nenhuma conclusiva, tanto por características físicas, quanto por memórias de uma menina que viveu com os pais por 15 anos, e mal sabia o país de origem de sua mãe, Alexandra de Hesse.
    *Vide "A Última Czarina" (Coleção Grandes Mulheres da História).

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