Luzes e sombras na vida e na obra de Caravaggio

Por Ronaldo Lastres



Judite e Holofernes
Michelangelo Merisi (1571 - 1610), famoso pintor barroco, deve seu apelido de Caravaggio, nome que o imortalizou, à pequena aldeia de onde sua família era originária. Seu pai, Fermo Merisi, estabelecido em Milão desde 1563, era arquiteto-decorador de Francesco I Sforza, Duque de Milão e Marquês de Caravaggio. Fermo se casou em segundas núpcias, em 14 de janeiro de 1571, com Lúcia Aratori. Nasceu dessa união seu primeiro filho (Caravaggio), em 29 de novembro de 1571, dia consagrado aos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael. Sem dúvida, o prenome Michelangelo se deve à data de seu nascimento, sendo que a escolha pelo nome do primeiro arcanjo representa também uma homenagem ao grande escultor e pintor toscano, Michelangelo Buonarroti, falecido alguns anos antes, em 1564, aos 89 anos de idade, e que se tornou famoso por diversas de suas grandes obras, incluindo os afrescos da Capela Sistina.
Uma sombra de mistério envolveu a vida de Caravaggio, incluindo seus dados biográficos, difíceis de discernir. O registro de seu nascimento não consta do pequeno povoado de Caravaggio, por isso a hipótese mais provável é a de que tenha nascido em Milão. Até recentemente acreditava-se que ele tivesse nascido em 1573, confusão devida ao fato de que, ao chegar a Roma, Caravaggio subtraíra dois anos de sua idade em virtude de maior valorização dos jovens talentos pelos mecenas.
Caravaggio foi o autor de uma autêntica revolução artística. Pintava seus personagens conforme a natureza, recorrendo ao claro-escuro. Muito ágil, pintava com notável rapidez, sem esboço nem planejamento. Compunha suas obras diretamente na tela. Tomava por modelos gente comum, pessoas simples, operários, velhos trabalhadores, em sua maioria, ciganos e algumas prostitutas, uma delas sua amante, o que lhe valeu severas críticas. Pode-se dizer que o emprego abundante do claro-escuro é uma criação estética de Caravaggio. Não que antes não fossem utilizados na pintura os contrastes de luminosidade, mas foi o pintor italiano quem mostrou as possibilidades expressivas e dramáticas da acentuação de tal técnica. Sua influência dominou a Itália e grande parte da Europa Barroca, tendo sido denominados "Caravaggisti" aqueles artistas que trabalharam sob a influência indireta de Caravaggio.


O Sacrifício de Isaac

O termo claro-escuro ("chiaroscuro" em italiano), que significa luz e sombra, é também conhecido como perspectiva tonal e consiste na técnica de produzir o efeito de modelagem da luz na pintura, onde um volume tridimensional é sugerido por luzes e sombras. O claro-escuro define objetos sem usar linhas de contorno, mas apenas pelo contraste entre cores do objeto e do fundo, exigindo assim, bastante conhecimento (a que devem unir-se sensibilidade e percepção) de perspectiva, do efeito da luz em superfície e das sombras. O barroco começou a incluir a sombra e a luz na pintura, iniciando um novo conceito na representação pictórica: a textura da imagem, causando a impressão de tridimensionalidade.
Marca registrada do claro-escuro, Caravaggio surpreende pelo emprego desta técnica, que iria mais tarde ser adotada por grandes gênios da pintura, como Rembrandt, aluno de Peter Lastman, o qual, por sua vez, tendo estudado dez anos em Roma, veio a tornar-se adepto dessa técnica. Outros tantos pintores, dentre os quais se destacam Vermeer, Rubens, Ribera, La Tour, Géricault, Delacroix e até mesmo Cézanne, das luzes e sombras também se utilizaram com maestria. Convém lembrar que até mesmo o neo-classicista francês Jacques-Louis David (1748-1825), expoente do movimento que se opunha ao barroco e ao rococó, buscando o retorno ao ideal estético greco-romano, ao realizar sua notável obra prima, de natureza documental - "Marat assassinado" ou "A morte de Marat" (1793) - liga-se no mais puro estilo dramático e realista de Caravaggio.
As figuras representadas pelo grande pintor italiano são iluminadas por um colorido cheio de contrastes, o que confere maior dramaticidade à cena. Essa nova conceituação de luz na composição pictórica, ou seja, a técnica de iluminação de Caravaggio, é hoje em dia bastante utilizada na produção cinematográfica e televisiva nas cenas onde a alta dramaticidade e suspense são necessárias para levar ao telespectador e ao público em geral sensações de preocupação e terror.
Todavia, conquanto a genialidade artística que o tornou célebre, Caravaggio era temperamental e tinha gênio tão violento quanto a violência que se estampava em suas obras, como nos mostra, entre outras, "David com a cabeça de Golias", "Judite e Holofernes" (existem duas versões dessas obras), a "Decapitação de São João Batista" (pintada para a Catedral de Valeta e que se caracteriza por trazer sua assinatura escrita com sangue) e "O sacrifício de Isaac", de 1603/1604" (obra também com duas versões que se encontra em Florença, na "Galleria degli Uffizi"), cujo tema, que se refere a conhecida passagem bíblica, é tratado com incrível selvageria, enfatizando a violência e a crueldade do sacrifício humano.
Caravaggio costumava andar pelas ruas, usando roupas extravagantes e um chapelão de feltro, com abas largas. Exibia sempre à cintura uma espada e um punhal, chamando ainda mais a atenção por carregar um cachorro ao colo. Estava sempre disposto a armar confusão e brigar por qualquer motivo, por mais banal que fosse. A partir de 1600, época que coincide com seu primeiro sucesso de público, Caravaggio passa a aparecer regularmente nos registros policiais de Roma, tendo sido preso várias vezes.
No dia 28 de maio de 1606 o temperamento explosivo e intolerante de Caravaggio leva-o à tragédia. Ele e alguns amigos se envolvem em uma briga, em razão de um jogo de "Pallacorda" (antepassado do tênis), e então ele mata o nobre Rannucci Tommasoni. Ferido gravemente na briga, foge para Nápoles, longe da jurisdição romana e, enquanto seu perdão era pleiteado em Roma, se dirige à Ilha de Malta, em julho de 1607, onde um ano depois se torna "Cavaleiro de São João" - a mais antiga ordem de cavalaria, fundada para proteger os peregrinos que iam a Jerusalém. Porém, logo após ter recebido o título de cavaleiro maltês, é acusado de pederastia, putridum et foetidum. Além disso, agride um influente nobre da irmandade, o que vem a prejudicar mais ainda sua imagem. É preso, mas ajudado por amigos, foge para Sicília. Muda de cidade seguidamente, de Siracusa para a Messina, daí a Palermo, retorna depois a Nápoles no outono de 1609, onde fica sob a proteção de Constanza Sforza Colonna, Marquesa de Caravaggio.
Em Nápoles é atacado por desconhecidos - possivelmente, agentes dos Cavaleiros de Malta. Os agressores abandonam o artista, supondo-o morto. Caravaggio, no entanto sobrevive e fica com uma cicatriz bem visível no rosto. A recuperação não se completa e o pintor leva consigo as seqüelas da brutal tentativa de homicídio. Ainda convalescente da agressão sofrida em Nápoles chega-lhe a notícia de que o Papa estaria prestes a conceder-lhe o perdão e permitir-lhe o retorno à Roma, o que o anima a partir, por via marítima, com destino à cidade eterna.
Segundo uma versão, Caravaggio, antecipando-se à anistia do Papa Paulo V, de volta a Roma, desembarcou em Porto Ércole, onde esperava receber a notícia oficial do seu perdão, porém, mal a embarcação chegara ao porto foi preso por engano. Depois de solto, percebeu que seu barco havia desaparecido e, desesperado, perambulou pelas praias sob o sol escaldante de verão até desmaiar de febre, vindo depois a falecer de febre maligna, aos 39 anos, em 18 de julho de 1610, em Porto Ércole - à época, protetorado espanhol. O perdão, que durante quatro anos ele tanto esperava, chegou, enfim, mas já era tarde demais.
Michelangelo Merisi da Caravaggio foi, sem dúvida alguma, uma das personalidades mais fascinantes da história da arte, não só por ter-se destacado como pintor, certamente o mais vigoroso do século XVII, mas também por ter encarnado o ideal do artista em conflito com as convenções sociais, artísticas e religiosas. Sua carreira sempre foi pontilhada por atritos com patronos em função do tratamento pouco ortodoxo que dispensava a temas religiosos. Entretanto, como se viu, o uso da luz e da sombra, definido como o uso dramático do claro-escuro e que ele soube tão bem desenvolver, proporcionou um novo vocabulário pictórico. Por outro lado, foi um homem violento em uma época da mesma forma violenta. Viveu em constante conflito com o mundo, mas teve a coragem de criar uma arte inovadora e realista, que causou bastante escândalo por parte daqueles que não tiveram a capacidade de entendê-lo. Seus contemporâneos não colocavam em dúvida sua genialidade criadora, mas consideravam que seu modo de pintar acabaria com a arte concebida no Renascimento. Seu senso artístico levou-o a criar uma arte verdadeira e popular. Seu mal estar existencial, porém levou-o à destruição: - morreu misteriosa e prematuramente em uma praia próxima a Roma.

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