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Memória da Destruição

Olga Mary (1891 - 1963) - Desmonte do Morro do Castelo
Memória da destruição: Rio, uma história que se perdeu (1889-1965). Foi esse o título de uma exposição realizada antes da administração do atual prefeito Eduardo Paes, pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), órgão da Secretaria Municipal de Cultura, e que deveria ser este ano reeditada, mas não vai acontecer. A mostra, sem muita divulgação na época, proporcionou uma espécie de viagem no tempo, exibindo imagens de um Rio de Janeiro que restou apenas na memória ou na iconografia sobre a cidade. Mostrou, também, as grandes intervenções urbanísticas levadas a efeito por aqueles que detinham o poder de transformar o tecido urbano de acordo com suas veleidades, interesses políticos ou financeiros, exatamente como ocorre ainda hoje na cidade do Rio.
Apesar de ter sofrido a ação, muitas vezes inconsequente, de seus "remodeladores", o Rio de Janeiro ainda é detentor de um patrimônio cultural de inestimável valor, que merece e precisa ser preservado. No entanto, a preocupação com a manutenção dos registros materiais e imateriais da cidade é muito recente, pois se inicia no final da década de 1970. Em 1979, por exemplo, houve a criação do Corredor Cultural, isso foi decisivo para que o casario antigo de dezenas de ruas do centro, onde se iniciou a construção da cidade, escapasse da destruição e, posteriormente, as Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APACs) estenderam a proteção do patrimônio a outros bairros do Rio. Hoje, no entanto, com a febre de construções visando a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, não se observam, por parte da administração municipal, novas medidas que busquem a preservação do patrimônio da cidade.

Morro do Castelo e bairro da Ajuda vistos do Morro de Santo Antônio (1885)
 Uma cidade sem berço
No início do século XX, a abertura da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, revela a destruição de todo o casario da época da Colônia e do Império, substituído por prédios da Belle Époque, que, por sua vez, também já não mais existem; posteriormente, o desmonte do Morro do Castelo suprimiu do mapa o verdadeiro berço da cidade, levando de roldão a Fortaleza, o Colégio dos Jesuítas, o Seminário de São José, a Igreja de São Sebastião e o Observatório. Por sua vez, a abertura da Avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1944, por um lado permitiu uma ligação direta entre a zona norte e o centro, porém acarretou, por outro, a perda de marcos expressivos da nossa história, como as setecentistas igrejas de: São Domingos, Senhor Bom Jesus do Calvário, e Nossa Senhora da Conceição, além da joia barroca que eram a igreja de São Pedro dos Clérigos. E também, em função do triste massacre, da Praça Onze, cujo nome persiste no imaginário carioca.
Isso tudo sem levar em conta a vida efêmera da maioria dos prédios construídos para abrigar os países e estados brasileiros participantes das exposições comemorativas da Abertura dos Portos, em 1908, na Praia Vermelha, e da Independência do Brasil, em 1922, na área ainda hoje denominada Castelo.
Outros edifícios de grande significado histórico e arquitetônico, cujos nomes permaneceram na memória como denominação dos logradouros onde se localizavam, como o Pavilhão Mourisco e o Palácio Monroe, constituem evidências dessa sanha destruidora.
O prefeito Pereira Passos mandou construir o Pavilhão Mourisco para marcar o fim da Avenida Beira Mar, que ligava o Centro do Rio à Zona Sul, projeto do arquiteto Alfredo Burnier. O pavilhão era coberto por cinco cúpulas, tinha duas escadas de mármore que davam acesso às varandas do primeiro pavimento. Nas colunas ao lado das entradas e no teto decorado liam-se numerosas inscrições árabes. Foi demolido em 1952, durante a administração João Carlos Vidal, para dar espaço para o Túnel do Pasmado.
O Palácio Monroe foi erguido em 1904, na grande exposição internacional em Saint Louis, nos Estados Unidos. O pavilhão do Brasil ganhou o primeiro prêmio pela beleza de sua concepção arquitetônica e, encerrado o evento, foi desmontado e transferido para o Rio de Janeiro. Sediou o Ministério da Viação, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Após intensas polêmicas e discussões, o prédio foi drasticamente destruído.

Morro do Castelo, Cais Pharoux e adjacêncas (1877)
 O Rio de Pereira Passos
Polêmica. Essa foi uma das principais características da administração de Francisco Pereira Passos no Rio de Janeiro, entre 1902 e 1906. Não se pode negar que o prefeito deu novos rumos à cidade, nem que promoveu, de fato, um verdadeiro "bota-abaixo", tirando do caminho tudo aquilo que impedia a concretização de seus inovadores projetos. Seu maior desafio era organizar a urbanização, sanear e civilizar a capital da recente república. Inspirado na Belle Époque, em quatro anos de trabalho transformou o Rio em uma cidade cosmopolita.
Há cem anos, o casario colonial e, também, os cortiços deram lugar a um centro urbano moderno, com forma de capital. É verdade que o prefeito teve de enfrentar forte oposição, inclusive do Governo do Distrito Federal, para derrubar tantas construções, mas fato é que quase um milhão de habitantes viviam em uma cidade sem transporte, sem escoamento de água, sem programas de saúde pública e sem segurança nas ruas.
Cartão postal antigo do Palácio Monroe
Sabemos que o prefeito não conseguiu eliminar nenhum desses problemas, mas deu o primeiro passo, de maneira que a arquitetura e a estrutura urbanística de Paris foram a inspiração para as reformas. Entre as inúmeras obras realizadas nessa época estão: a construção da Avenida Rio Branco; a Avenida Beira-Mar; a Rua Rodrigues Alves; a Avenida Mem de Sá; e de prédios que se impõem sobre nossos olhos, como: a Biblioteca Nacional; o Teatro Municipal; o Mourisco e o Palácio Monroe, que, infelizmente, não tiveram a mesma sorte e foram demolidos.
A fim de conseguir reordenar e aumentar a extensão da malha de circulação viária, o prefeito abriu uma série de ruas e alargou outras tantas. Para isso, grande quantidade de casas, comerciais e residenciais, foi derrubada. Lamenta-se ainda hoje as perdas de valor arquitetônico e histórico, e até sentimental, para o povo do Rio, mas, se ruas não tivessem sido alargadas naquela época, teria sido muito mais difícil fazê-lo depois. Pereira Passos inspecionava pessoalmente, e bem de perto, as obras da Avenida Beira- Mar, que começou a ser aberta logo no início de seu governo e ia do centro da cidade até o Morro da Viúva. Para o prefeito, a abertura de avenidas litorâneas permitiria o acesso eficiente de uma extremidade à outra da cidade, um notável sistema que foi reforçado posteriormente pelos túneis.

Vista do Centro e Igreja da Candelária (1885)
Durante a realização do projeto, fez-se necessário o desmonte do Morro de Santo Antônio para a obtenção de terra suficiente aos aterros. Construir a avenida sobre espaço roubado do mar já estava nos planos do prefeito, a fim de permitir os alargamentos posteriores, e que se mostrou como margem muito útil quando da construção do Aterro do Flamengo. As maiores modificações, porém, foram sofridas pelo centro da cidade: para a passagem da Avenida Mem de Sá, Pereira Passos mandou pôr abaixo todos os prédios paralelos aos Arcos da Lapa, a fim de permitir a liberação do tráfego a partir da construção da avenida. Foi com essa mesma finalidade que ocorreu o desmonte do Morro do Senado.
Também, precisou ser extinto, posteriormente, o Largo de São Domingos, para a abertura da Avenida Passos, batismo que homenagou, postumamente, o ex-prefeito. As melhorias atraíram muitos comerciantes, mas não conseguiram extinguir a prática do baixo meretrício na região da Praça Tiradentes, o que perdurou até pouco tempo atrás.
A antiga Rua da Vala, atual Uruguaiana, precisou ser bem alargada e aterrada durante a gestão Pereira Passos. Abrigava as melhores lojas do início do século, mas meio lado da rua veio abaixo durante as obras, concluídas em 1906. A área hoje pertence a um Corredor Cultural, e ainda é possível ver, em muitas fachadas, a elegância neoclássica dos prédios comerciais.
A mudança mais evidente, e mais famosa no panorama do centro, surgiu com a abertura do Boulevard Avenida Central, ou Rio Branco, que começa na Praça Mauá e acaba na ligação com a Avenida Beira-Mar. Foi inaugurado em 1905, mas a maioria dos prédios, quando da inauguração, possuía somente as fachadas, que tinham de estarem prontas com a Avenida. Nesta, ergueram-se a Biblioteca Nacional e a Escola Nacional de Belas Artes, atual MNBA. Para a construção da Escola, o prefeito fez um corte no Morro do Castelo, a fim de assegurar uma largura de 33 metros para a Avenida. Muitos acharam que seria larga em excesso, mas face aos estressantes engarrafamentos, consideramos hoje a largura da rua insuficiente. No final da avenida existia o largo da Mãe do Bispo, que deu lugar ao Teatro Municipal, e este só ficou pronto em 1909.

Palácio Monroe, o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Saint Louis -
EUA. Ganhou o peimeiro prêmio pela beleza de sua concepção arquitetôpnica. Foi
desmontado e transferido para a Cinelândia - centro do Rio. Em março de 1976 o
monumento foi demolido.
Nem todas as obras, porém, estão aí, a olhos vistos. Uma das maiores preocupações de Pereira Passos era a higiene e, para executar planos de saneamento básico, contou com a ajuda e orientação de Oswaldo Cruz. Um dos episódios mais marcantes dessa empreitada foi a "Revolta da Vacina", em 1904. As pessoas temiam ser vacinadas e era preciso que os agentes de saúde fossem até a casa de todos acompanhados da polícia, o que gerou um grande descontentamento na população. As pessoas, removidas dos cortiços, que já eram habitações precárias, começavam agora a subir os morros para não se afastar tanto do centro, e a ocupação desordenada deu início à favelização, que se tornou um problema insolúvel para os governantes posteriores, devido ao grande crescimento populacional. Na época, um objetivo importante a ser atingido era o melhoramento dos serviços a cargo da prefeitura, como a instalação de uma rede pública de escolas primárias e a ampliação do atendimento médico gratuito à população. Hoje, não podemos dizer que tudo foram só acertos. Muitos desmandos foram cometidos em nome da "modernidade" e da "civilização", e as provas - mais contundentes e mais expressivas que as palavras - são as imagens que fizeram parte da exposição "Memória da destruição: Rio, uma história que se perdeu (1889-1965)", hoje guardadas no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ).

Pavilhão Mourisco, construido por Pereira Passos para marcar o fim da Avenida Beira
Mar, que liga o Centro a Zona Sul do Rio de Janeiro

Colaboraram: Litiere C. Oliveira; Antonio Carlos Austregésilo de Athayde; Monique Cardoso.

Referências consultadas:
MALTA , A.; REBELO, Marques; BULHÕES, Antônio.
O Rio de Janeiro do Bota-Abaixo: Fotografias de Augusto Malta. PASSOS, Pereira; LENZI, Maria Isabel Ribeiro.
Pereira Passos: notas de viagens. Rio de Janeiro: Sextante
ARQUIVO Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ).
Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.

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