Por João Ubaldo
Ribeiro (Da Academia Brasileira de Letras)
Acho que já falei aqui
numa comadre minha que diz que tudo é trauma de infância.
Inclino-me a concordar com ela e, muitas vezes, nem tenho de
escarafunchar muito essa remotíssima fase de minha vida para
descobrir a origem de certas inquietações do presente. O Leviatã é
um exemplo claro, porque meu medo dele vem desde o tempo em que, no
meio da livrama de meu pai, eu topava com as ilustrações de Gustave
Doré para a Bíblia e lá estava o tremendo monstro, contra o qual,
assegurava o texto, o bronze das espadas era palha, ou seja, não
adiantava nada. E devo ter misturado isso com alguma outra
ilustração, provavelmente do clássico de Thomas Hobbes intitulado
Leviatã, com que também topei nessa época, tentei ler para ver se
vencia o medo, não entendi nada, desisti e o trauma deve ter
persistido, ou piorado.
Hobbes é comumente
tido, numa simplificação bastante grosseira e mesmo injusta, como
uma espécie de teórico do absolutismo. E foi assim que me falaram
dele nas escolas. Para mim o Estado hobbesiano, onde o poder se
concentra no que ele chama de "soberano" e o súdito não
tem ingerência no governo, passou a ser definitivamente aquele
monstro das ilustrações. Depois, com a leitura de 1984 e a chegada
de um tempo onde, fotografados, filmados e gravados, estamos cada vez
mais submetidos a alguma espécie de controle, ou pelo menos
vigilância controladora, o bicho vem me assombrando bastante e devia
assombrar vocês também, porque vamos facilitando, vamos facilitando
e daí a pouco ele nos engole a todos.
E essa engolição não
vai ter nem a colher de chá do Estado hobbesiano. Nele, de fato o
soberano detinha todo o poder, mas também tinha o dever básico de
dar segurança ao súdito, pois, afinal só ela conteria o lobo do
homem e era para isso que o pacto social existia. Aqui no Brasil, o
nosso Leviatã já engole mais de um terço do que ganham os pobres e
remediados (e nada dos verdadeiramente ricos) e não dá segurança
nenhuma. Se esta for entendida como algo além de garantias contra a
violência e abranger, por exemplo, a saúde, sabemos que o monstro,
além de comer todo o dinheiro que pode, obriga os súditos a
contratar planos médicos privados e nem mesmo estes resolvem, pois o
bicho permite que façam o que bem entendam, inclusive tungar
safadamente os que há décadas pagam por eles os olhos da cara.
O Leviatã de Gustave
Doré, se bem revejo na mente as gravuras da infância, tinha
tentáculos semelhantes aos de um polvo. É uma boa imagem para o que
nos acontece hoje em dia, a toda hora um novo tentáculo se
estendendo sobre nós, uma chuva de normas, cartilhas, orientações,
admoestações, avisos, cobranças, proibições, restrições,
instruções e assemelhados, vinda aparentemente de mil direções,
que ninguém conhece direito e a que todo mundo obedece sem
questionar. Sabe-se, mais ou menos vagamente, da existência de
agências reguladoras hoje muito ativas, tripuladas por sabe-se lá
quem, todas empenhadas em emitir regras para a nossa conduta. Ninguém
elegeu esse pessoal, ninguém foi nem ouvido nem cheirado quanto a
sua nomeação (vai ver que alguns, ou todos, foram ouvidos
preliminarmente no Congresso, mas isso e nada todo mundo sabe que
quer dizer a mesma coisa, até porque muitos dos nomeados para as
agências devem ter sido indicados por deputados ou senadores), mas
eles fazem o que querem e, mesmo quando quebram a cara, quem paga o
prejuízo somos nós.
Cabe recordar pela
milésima vez, como uma espécie de dever cívico, aquela regulada
que deram nos motoristas, obrigando todos a trafegar com um tal kit
de primeiros socorros. Todos os donos de carro compraram o kit, que
só tinha um fabricante, o qual, naturalmente, encheu o rabo de
dinheiro, assim como, certamente, outros envolvidos na operação.
Concluiu-se que o kit não valia nada e era até prejudicial, mas
ninguém foi investigado e muito menos punido, os súditos morreram
na grana que os espertalhões faturaram e ficou tudo por isso mesmo.
Mais recentemente, veio o tal assento para crianças, que de novo
beneficia fabricantes, ou fabricante, e é uma medida de meia pataca,
porque não pode ser aplicada a táxis, ônibus e vans, além de
causar problemas de vários tipos. Mas todo mundo se esquece disso,
compra o raio da cadeirinha e segue obedecendo.
Torcer no futebol já
está regulamentado, mas não é descabido prever que cada clube
venha a ser obrigado a pagar danos morais ao juiz chamado de ladrão
por seus torcedores. Curtir com a cara do perdedor, nem pensar. O
técnico que ficar na beira do campo soltando palavrões também será
multado e mal posso esperar o dia em que emanarão do banco
instruções como "meu anjo, vê se te deslocas mais
expeditamente!". E o atacante vai pedir um cruzamento exclamando
"alça-me o balão de couro, companheiro!". Quanto a
piadas, não só de futebol mas quaisquer outras, atualmente já
proibidas em relação aos candidatos, certamente também serão
objeto de restrições impostas pela necessidade de que vivamos numa
sociedade absolutamente livre de discriminações ou preconceitos de
toda espécie. Não pode piada que, de alguma forma, mostre qualquer
categoria social ou humana sob uma luz considerada pejorativa. Ou
seja, não pode piada nenhuma, mesmo porque as que se refiram a
animais, como as de papagaio, estarão sujeitas ao crivo rigoroso do
Ibama, pois nunca se sabe quando uma piada poderá induzir a um crime
contra um animal protegido. Talvez se crie - e fica a sugestão, é
mais uma porção de cargos para preencher - uma base nacional de
piadas, cadastrando todas as permitidas, é só checar antes de
contar. Agora que dá para comparar, o monstro de Gustave Doré não
era tão feio assim, bons tempos.
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