busca de uma total inserção existencial dentro do incipiente mundo da cultura de massa brasileira estava, em larga medida, presente na poética de jovens artistas do fim dos anos 60 e início dos 70. Neste sentido, havia certa comunhão entre as intenções plásticas de Antonio Manuel e as do artista mineiro Raymundo Colares. Um encontro na cidade, nas esquinas, nos botecos: a poética urbana. O reconhecimento e a aceitação da cultura de massa só se tornavam possíveis a partir da formação de um sistema de arte efetivamente comprometido com a problemática cultural brasileira. A tentativa de libertação frente ao nosso provincianismo patriarcal caracteriza a emergência destes dois artistas no nosso contexto artístico.
A visada instantânea do coletivo anônimo na obra de Raymundo de Colares define a sua poética urbana. Rápidos planos, entrecortados obliquamente, pulverizam o tempo, e celebram o imediato. Antonio Manuel impressiona-se, principalmente, com as telas em grande escala do jovem Raymundo Colares. Um fator decisivo para a correspondência entre as duas poéticas reside na compreensão da nova ordem mundial, premente e agigantada. A percepção de Colares, em certo sentido Pop, traz para a arte brasileira a fusão entre um mundo já em escala de massa e a preocupação construtiva. A medida ampliada relaciona-se diretamente com o impacto da imagem sobre a horda indistinta que transita pelas ruas: "O tamanho do quadro tem significado claro. É o cartaz de rua, todo mundo vê, percebe logo. O consumo é igualmente rápido. À maneira dos 'out-doors' elimino os detalhes superficiais e busco a força visual (...) Tudo é problema de escala" (1). O outro aspecto intrigante da sua pintura é a condensação espacial mediante cortes e visadas em diagonal. O construtivismo obviamente presente, cara herança brasileira, conforma-se aí ao mundo da velocidade moderna, utilizando-se para tanto a estrutura do gibi. O simbolismo esquemático dos quadrinhos confere um toque irônico à plástica de Colares, que nos atrai basicamente graças à sua dinâmica, movimentação e ao chamariz comunicativo de seus cortes e angulações.
Antonio Manuel, Flans, 1968-1975.
Jornais, 1966-1968.
Enquanto Antonio Manuel olhava as bancas das calçadas, os jornais e revistas, Raymundo Colares olhava para o tráfego intenso, mais especificamente, para os ônibus municipais. O transporte de massa aproxima pontualmente a vida e a arte da mesma maneira que o objeto escolhido por Antonio Manuel: o flan do jornal. A compreensão do sistema de arte, baseada numa sintonia fina com as novas questões culturais, acentua a coincidência entre as duas poéticas. Não se trata da correta apreensão da realidade urbana, mais do que isto, trata-se de uma exaustiva e inteligente pesquisa sobre a sua forma historicamente inédita. Para Antonio Manuel, a questão parte da incerta síntese geométrica do espaço da cidade e suas vicissitudes; já, para Colares, a implicação espacial está associada à precisa radiografia da relação espaço e tempo - é necessário desconstruir para depois reconstruir.
A percepção do urbano como estrutura construtiva constitui a base do raciocínio plástico dos dois artistas. A isto, some-se o entendimento acerca do mercado brasileiro na sua extenuante defasagem. A estratégia de circulação era retirar as obras do circuito mercadológico, para tanto, utiliza a reprodução fotográfica em larga escala, bem como, confere às obras um caráter industrializado decorrente da ausência do gesto pictórico do artista, contrariando, assim, o gosto estabelecido. No depoimento abaixo, Raymundo Colares assume sua postura avessa ao sistema de arte e sua estratégia de atuação:
Com isso eu pretendo tirar a minha arte exclusivamente das mãos do burguês colecionador. Uma pessoa que tenha quadro meu, vai ter porque gosta e sabendo ainda que qualquer outra pessoa pode, se quiser, ter o mesmo quadro. Pois qualquer quadro meu pode ser reproduzido, sem perder a autenticidade. Nos meus quadros não há pincelada solta nem o chamado 'toque artístico'. Por isso, qualquer pessoa que os copie obedecendo a sua estrutura, não estará alterando em nada o trabalho, que continuará a ser tão meu quanto antes. A minha principal preocupação é que o quadro não fique preso apenas a um colecionador ou a um só trabalho. A única coisa que gasta é o material. Esse negócio de direito autoral não existe para mim.
Solidão e anonimato eram dados recorrentes na obra de Colares: o homem excluído em decorrência da intensa homogeneização do mundo massificado. A relação entre os ritmos da cidade - sua codificação - permeia as grandes estruturas de alumínio pintadas com tinta industrial metálica e em cores vibrantes. A frieza do material somada à velocidade dos entrecortes confere à série Ônibus (1968) um dinamismo estranho e um tanto etéreo. A enorme escala preenche a parede, confirmando o achatamento existencial do ser humano numa dimensão anti-natural. A assepsia do material utilizado por Colares contrasta com os materiais precários das obras de Antonio Manuel, contudo, as duas referências, a princípio, díspares, reverberam na mesma cadência melódica: os ruídos da cidade.
Raymundo Colares, ônibus
Os gibis cromáticos (1982) herdaram talvez da geometria volpiana a singeleza e o domínio da cor. A experiência íntima com esses objetos do cotidiano existencial do artista - já imerso no mass media - transparece nas obras e impregna a percepção do espectador. O trato das cores acentua o caráter específico de cada elemento, o fetiche de cada artista. Nos gibis, a passagem entre cores é toda construída pelo encontro dos vértices dos ângulos; produz quase o efeito de um caleidoscópio cromático. Cada página é o arranjo possível de quatro quadros multiplicados por mais quatro, numa progressão constante. O exercício possível da construção da tríade espaço/tempo/movimento desafia a verve do artista. O objetivo não é ativar uma pura sensação ótica e sim propor uma construção espacial a partir do movimento e da cor. Talvez haja outra referência plástica orientando os gibis: os Bichos de Lygia Clark. A manipulação do participante faz parte da obra. Assim, ele a cria, a constrói e a concretiza. De cada dobradura e de cada dobradiça deduz-se um plano, um apoio e um projeto. Na obra, é lançada a aposta, propondo a harmonia fenomenológica da síntese visão - tato.
Manuel Colares, Gibi
A tela Cata-vento (1988) de Antonio Manuel orienta-se pela poética dos gibis, o aprendizado da construção esquemática através da cor. Nela, a sutil mudança dos tons pretos reverbera no espaço dando uma sensação de ritmo infinito, mais contemplativo. A opção pelo vibrante, na estranha orquestração do amarelo e do vermelho, busca um ritmo acelerado, condizente com a prolixa e caótica metrópole. Os contrastes chegam ao limite, desde a singela alteração de tom sobre tom até o vibrante confronto de cores. Se há uma aparente tranquilidade contemplativa, um indicativo de serenidade absoluta, é somente para acentuar a sua própria impossibilidade numa cultura adepta do caos e avessa ao silêncio.
Por Tatiana Martins
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