De Chirico: O Sentimento da Arquitetura

O sentimento da arquitetura é, provavelmente, um dos primeiros que os homens experimentaram. As moradias primitivas encravadas nas montanhas, reunidas no meio de pântanos, indubitavelmente originaram nos nossos antigos avós um sentimento confuso feito de mil outros e do qual desencadeou, no decorrer dos séculos, aquilo que nós chamamos sentimento da arquitetura.

                                                                                Giorgio de Chirico


 Piazza d'Italia com estátua de Cavour, 1974


A mais expressiva coleção de obras do mestre da Arte Metafísica Giorgio de Chirico (1888-1978) já exposta no país é uma realização da Fundação Iberê Camargo, Casa Fiat de Cultura, Masp e Fondazione Giorgio e Isa de Chirico, com patrocínio da Fiat Automóveis.  “De Chirico: O Sentimento da Arquitetura - Obras da Fondazione Giorgio e Isa de Chirico” está sendo organizada com a colaboração da instituição que fica sediada em Roma e tem curadoria assinada pela também italiana Maddalena d'Alfonso, crítica de arte e arquitetura atualmente vivendo em Milão. 
A exposição itinerante - integrada às comemorações do "Momento Itália/Brasil 2011-2012 - inicia pela Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, onde permanece até 4 de março de 2012 e depois segue para a Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte (20 de março a 20 de maio de 2012), e logo após para o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - MASP (31 de maio a 12 de agosto de 2012). Reúne 45 pinturas e onze esculturas produzidas no período chamado neometafísico, entre os anos 60 e 70,  além de  66 litografias de 1930, aqui apresentadas juntas pela primeira vez. Essas gravuras são livremente inspiradas nos Calligrammes (1918) do poeta e amigo Guillaume Apollinaire, um conjunto de 86 líricas, das quais 19 eram precisamente caligramas: poemas visuais cujos versos são dispostos na página de modo a formar um desenho. A arquitetura é um dos motivos centrais da pintura do italiano e está presente em toda a exposição. Ao visitante, é oferecida uma leitura do espaço urbano "dechirichiano" e como ele estabelece a relação entre a figura e o espaço arquitetônico. Nas suas obras, o imaginário urbano e a cidade encarnam a dimensão interior e psicológica do homem moderno.
Se Iberê Camargo estivesse vivo - hoje com 97 anos - certamente teria muito prazer em receber "na sua Fundação" o mestre de Chirico, com quem estudou um ano em Roma e do qual era admirador confesso. Em 1948, quando partiu para a Europa com  uma bolsa de estudos, não hesitou a solicitar aulas com o italiano, que já era célebre por seu vasto conhecimento técnico em pintura. A partir de setembro daquele ano, suas tardes transcorreram no atelier de de Chirico. "Iberê sempre relatava esse período, que foi muito forte para ele. Foi um momento de absorção de modelos. No retorno ao Brasil, em 1950, ele já está fazendo algo muito mais aprofundado e criativo do que fazia antes", comenta a crítica de arte e professora da UFRGS, Mônica Zielinsky, responsável pela catalogação da obra completa de Iberê.
À exemplo do mestre italiano, Iberê também voltou suas costas às evoluções da arte (num momento em que ela vibrava com a pintura abstrata e o neoconcretismo). "O que ele aprendeu com de Chirico foi o modo de trabalhar a pintura, de misturar a tinta e os pigmentos", aponta Mônica. Contudo, por mais que Iberê negasse uma aproximação temática com o italiano, a especialista enxerga semelhanças: "Com Lhote (André Lhote, com quem Iberê estudou na França), Iberê aprendeu a composição, a alternar claros e escuros, e com de Chirico, tomou um pouco da alma, da solidão, e uma certa densidade da pintura". Segundo o filósofo e sociólogo Jacques Leenhardt a afinidade dos dois se encontrava na expressão do mistério que envolvia as coisas. Há, inclusive, figuras emblemáticas que aparecem na obra de ambos, ainda que de maneira diversa, como o manequim e até mesmo o carretel.

Triângulo metafísico (com guanto), 1958 óleo sobre tela - 69 x 48cm

Ter parte da extensa produção de Giorgio de Chirico no Brasil é uma oportunidade única para o público conhecer a obra do mestre da arte metafísica. O artista foi antecessor de algumas das mais importantes temáticas do pensamento artístico moderno e contemporâneo. Pintor, escritor e crítico,  promoveu junto a Alberto Savinio, Carlo Carrà e Giorgio Morandi a pintura metafísica, que retoma a expressão da filosofia grega que significa "para além das coisas físicas". Inventada por ele, a corrente não buscava novas formas, como as tendências de vanguarda do século XX, mas novos significados. Em suas composições, não há uma linguagem estranha e o uso da luz e da perspectiva é típico, mas a atmosfera, o silêncio e o mistério é que causam certo mal-estar.   

Archeologi, 1968 - Óleo sobre tela 84,5 x 64,5 cm

Um exemplo é o quadro Musas inquietantes (1924), no qual fragmentos díspares se põem ao lado do Castelo Estense, que surge em perspectiva distorcida sobre um palco de tábuas onde se assentam enigmáticas esculturas-manequins.  
A Arte Metafísica influenciou o grupo dos surrealistas, ao qual de Chirico chegou a integrar por um breve período. Eles viram nele um dos pais do movimento, mas rejeitaram sua obra produzida após 1919. Foi a partir deste ano que de Chirico empreendeu um retorno ao classicismo, passando, em seguida, por fases de inspiração naturalista e barroca, sempre conseguindo manter, no entanto, um caráter visionário e único na história da arte.
As obras cedidas pela Fondazione Giorgio e Isa de Chirico fazem parte da última aventura expressiva do artista: a neometafísica. Os trabalhos deste período começam a ser produzidos nos anos 60 e são caracterizados pela exultação através da cor e o caráter poético do tratamento dos protagonistas. Demonstram o especial e inovador uso do espaço como palco da relação entre o homem e o seu mundo. Neles, estão presentes as praças da Itália, tema comum a muitas obras, e os interiores metafísicos que funcionam como metáforas da complexidade do homem moderno. Em O Retorno de Ulisses (1986), por exemplo, um aposento doméstico apresenta um tapete de água atravessado com esforço por um homem num barco representando o mito da Odisseia. Nos trabalhos neometafísicos, também são típicas as figuras dos manequins e dos arqueólogos, que são simulacros de si mesmos e se reconhecem nos artefatos relacionados a seus ofícios.
Cidadão do mundo, de Chirico viveu em Volos (sua cidade natal, na Grécia), Mônaco, Paris, Ferrara, Roma e Nova Iorque.  A experiência de universos culturais diversos moldou a sua arte, onde as cidades são reinterpretações, em chave simbólica, da arquitetura clássica e suspensa no tempo: tanto na imagem da "praça" como nas citações específicas de lugares tais como a igreja florentina Santa Maria Novella, que aparece nesta mostra como cenário da obra O pensador (1973).

Edipo e la Sfinge, 1968 Óleo sobre tela 90x70 cm

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