A Veneza de Vivaldi


A romântica cidade à beira do Adriático, antiga república chamada de Sereníssima, foi berço de um dos mais brilhantes compositores do século XVIII. O violinista Antonio Vivaldi percorria diariamente seus canais, a bordo de gôndolas, e se inspirava em cenários belíssimos, como o da ilha San Giorgio Maggiore. E nas igrejas e nas ruas, marcadas por uma arquitetura com estilo próprio, ainda é possível saborear a Veneza que encantou o autor de As Quatro Estações.

Noite de apresentação no Teatro Sant'Angelo, fevereiro de 1727. A platéia acompanha, encantada, a première do concerto Il Farnace. O compositor tem o curioso apelido de Padre Vermelho, por causa de sua cabeleira ruiva, e já escreveu mais de quatrocentos concertos, a maioria para a instituição religiosa Ospedale della Pietà, uma casa para meninas órfãs. Comenta-se que ele é uma incansável fábrica de música, capaz de compor um concerto em apenas um dia e uma ópera numa semana. Dizem as más línguas que, apesar de ordenado padre, o maestro tampouco perde uma boa festa ou os flertes com as prima-donas. Violinista virtuoso e fluente no dom de improvisar, ele mais uma vez arranca aplausos do público de sua cidade natal, Veneza.
Depois do espetáculo, Antonio Vivaldi passa pela efusiva sessão de abraços e felicitações. Uma procissão de gôndolas, levando o gênio e seus entusiasmados colaboradores, percorre os canais da cidade, e as comemorações prosseguem noite adentro na casa do violinista. Ele mora na residência paroquial de Santa Marina, próximo à Ponte del Paradiso, com o irmão, Giuseppe, o pai, Antonio Batista, veterano violinista na Igreja de São Marcos, e três empregados.
Os moradores de Veneza reconhecem-no nas ruas e o cumprimentam respeitosamente. Para seu endereço fluem dezenas de cartas solicitando-lhe a presença mos mais importantes centros musicais da velha Europa: Roma, Amsterdã, Paris, Praga, Florença (onde sua obra L'Impermestra acabava de estrear, com sucesso, no Teatro Pergola), e Viena, em cujos teatros ele realizou uma bem sucedida temporada, entre 1719 e 1722.
Vivaldi está no auge de sua carreira, e figuras influentes, como o Marquês de Albizzi, haviam se convertido em seus fãs e patrocinadores. O sucesso recente de As Quatro Estações havia atenuado as preocupações financeiras. Mesmo assim, ele tem que trabalhar duro para afastar o fantasma da probreza, que assombrou praticamente todos os compositores brilhantes.
No dia seguinte, ele acordará pouco depois do amanhecer e recitará as primeiras orações do dia. Depois, embarcará numa gôndola rumo à Riva degli Schiavoni, onde as órfãs da Pietà estarão prontas para mais um ensaio. Se as crises de asma - que frequentemente o aflingem - permitirem, ele ensaiará durante uma boa parte do dia.
Chamada no passado de Sereníssima República de Veneza, a romântica cidade no nordeste da Itália guarda os mesmos monumentos que inspiraram seu músico mais ilustre. A Basílica de São Marcos e sua piazza, o grande Canal, cujas margens são adornadas por palácios e aconchegantes cafés, o Palácio dos Doges e a Ponte dos Suspiros são marcos incomparáveis que desafiam o tempo. Vivaldi era um compositor andarilho, que adorava viajar pela Europa, conquistando novas platéias. Mas sempre voltava à cidade onde nasceu, para estrear obras inéditas e saborear a companhia dos amigos. Da mesma forma, Veneza viveu períodos de decadência e até a ameaça de inundação pelas grandes marés, mas sempre voltou a brilhar acima das nuvens sombrias, como destino certo da maioria dos turistas que visitam a Itália.

O jovem gênio estreou
na Basílica em 1698
Veneza foi erguida sobre um arquipélago numa laguna do mar Adriático, cerca de dois quilômetros a leste do continente. A principal avenida é líquida: o Grande Canal, que serpenteia através da cidade com a forma de um S invertido. No tempo de Vivaldi, as gôndolas deslizavam pelo labirinto de canais com a lentidão característica de era pré-capitalista; hoje por ali passam barcos rápidos como os motoscafi ou o romântico mininavio apelidado de vaporetto.
Como parte do charme de uma arquitetura que herdou traços bizantinos mas desenvolveu um estilo inigualável, a cidade exibe ainda cerca de quatrocentas pontes. A Ponte Rialto, construída no século XV, foi durante muito tempo a única a cruzar o Grande Canal. Ela desembocava num mercado medieval, hoje um conjunto de lojas e barracas que vendem desde roupas até cristais de Murano. A Ponte dos Suspiros veio depois, provavelmente em 1600, para ligar o Palácio dos Doges às prisões. Os campi, pequenas praças decoradas com jardins e poços, como os do Campo de San Zanipolo, e as chaminés esculpidas contribuem para tornar inconfundível a paisagem local.
Ainda é possível percorrer a Veneza que Vivaldi amava. Vamos embarcar num vaporetto, em busca de uma cidade do passado que ainda resiste em meio a modernidade. Primeira parada: a fantástica Piazza San Marco, ponto central dos seis distritos (sestiere) de Veneza, um cenário monumental formado pela Basílica de São Marcos, no fim,e, na entrada, o grande campanário - uma torre de sinos com 98 metros de altura. A igreja exibiu inicialmente formas orientais, mas acabou adquirindo individualidade, com uma decoração rica e detalhista. Tanto o templo quanto o campanário foram concluídos mo século XII. No tempo de Vivaldi, já eram uma preciosidade arquitetônica. Ali o pequeno Antonio assistia às performances de seu pai ao violino e sonhava com o dia em que poderia apresentar-se para as grandes platéias. A oportunidade surgiu em 1698, quando o violinista de apenas vinte anos participou de um conserto na véspera do Natal.

O Palácio dos Doges sobreviveu a vários incêndios
Na Piazza San Marco está ainda o festivo Café Florian, remanescente dos cafés onde artistas e sociedade venezianos reuniam-se para discutir e confraternizar. Não é difícil imaginar o Padre Vermelho saboreando um bom vinho e comentando o cenário musical da época como Maddalena Pieri, de Florença, que cantou em várias apresentações de Vivaldi e, dizia-se, não desistia de fazê-lo renunciar ao voto de castidade. Talvez falassem também de teatro, assunto em voga na época, e da complicada política de alianças das repúblicas da Península Italiana de então.
A partir daí, andando a pé ou trocando o vaporetto por uma gôndola, é preciso passar pela Ponte dos Suspiros e contemplar o Palácio dos Doges, os magistrados supremos da Sereníssima República. Vivaldi possivelmente contemplava o mesmo cenário, ao navegar de casa rumo ao Ospedalle de la Pietà. Em sua época, a cidade já não vivia os tempos gloriosos do florescimento do comércio e do poder marítimo. Os doges pouco podiam fazer diante da ameaça dos turcos, que se apossavam de territórios como a ilha de Creta. Nada disso, porém, se refletia na imponência do palácio, construído pela primeira vez no ano de 814 de nossa era. Tratava-se de uma construção bem menor do que a atual, e foi destruída por um incêndio em 976. A forma que hoje se vê surgiu em 1424, com fachadas gêmeas direcionadas para o Molo e a Piazzetta di San Marco, e também foi abalada por diversos incêndios.
Antonio Vivaldi nasceu em 4 de março de 1678 e desde criança teve aulas de música com o pai. Foi ordenado padre aos 25 anos, e na mesma época interessou-se pelas órfãs da Pietà. Sob sua direção, as meninas receberam educação vocal e aprenderam a tocar vários instrumentos, formando uma simples porém disciplinada orquestra. O compositor orgulhava-se de ter reunido uma vasta obra ainda na juventude; de fato, setecentas peças sobreviveram até nossa era.
A variedade de estilos é impressionante. Vivaldi compôs concertos para instrumentos de cordas e de sopro - incluindo a clarineta, que na época começava a ser usada -, totalizando 450, quase sempre para três ou quatro solistas, além das sonatas e trio-sonatas. Também escreveu pelo menos 21 óperas, a maioria comédias baseadas em libretos clandestinos no dialeto vêneto.

Vivaldi musicou a natureza em As Quatro Estações
Alguns críticos consideram que a personalidade carismática e extrovertida de Vivaldi está vivamente impressa nas músicas, principalmente na obra-prima As Quatro Estações. Estes quatro concertos fazem parte de um conjunto de doze, escritos para violino solo e originalmente intitulados O Confronto da Harmonia e da Invenção. Ao descrever as transformações criadas na paisagem pelas estações do ano, Vivaldi musicou momentos como a expansão do gelo sobre as águas, a alegria das colheitas e a emoção das caçadas. Os concertos têm um ritmo cativante e sobreviveram à negligência com que foi tratada a obra do compositor veneziano após sua morte, em 1741.
Mas o destino não permitiu que o gênio de Vivaldi fosse condenado ao esquecimento. A centenas de quilômetros de distância da Itália católica, um compositor alemão interessou-se por sua obra. Era um luterano convicto, descendente de três gerações de músicos e famoso por suas composições geniais, que desafiavam o estilo sacro da época. Johann Sebastian Bach (1685-1750) admirou tanto a música do maestro italiano que se dedicou a transcrever várias de suas composições. As obras dos dois compositores passaram por uma revivescência no século XIX e hoje têm seu valor universalmente reconhecido.
Em Veneza, na ilha na Ilha San Giorgio Maggiore, foi fundado o Instituto de Letras, Música e Teatro, com uma subdivisão Instituto Italiano Antonio Vivaldi. Assim como a música do Padre Vermelho, Veneza é eterna e irresistível.

Veneza, a cidade das águas

A realidade de Veneza ultrapassa a capacidade
imaginativa do sonhador mais fantasioso.
(Charles Dickens)

No século XV, Veneza era o maior porto do mundo, o centro do comércio mundial e tinha mais de 200 mil habitantes. Sua importância para o movimento da Renascença foi muito grande, pois grande parte da riqueza da Europa passava pelos seus cais (os portugueses ainda não tinham descoberto o caminho para as Índias) e as tradicionais e milionárias famílias venezianas protegiam e bancavam os artistas.
As origens da "mais inverossímil das cidades" - segundo Thomas Mann, remontam ao século V, quando alguns dos habitantes da Aquiléia, perseguidos pelos hunos, se refugiaram nas ilhas pantanosas. A cidade foi construída sobre 117 ilhas e ilhotas do Lido, uma lagoa protegida por um banco de areia. Em 697 já era um ducado governado por um doge e após a chegada dos restos mortais do apóstolo São Marcos, vindos da Alexandria, em 827, transformou-se numa metrópole do comércio marítimo, uma cidade consagrada a São Marcos, nome de sua praça mais famosa. Constantinopla foi conquistada pelo Doge Enrico Dandolo em 1204.
No início os palácios foram construídos segundo modelos orientais, tornando-se cada vez mais luxuosos. Em seguida fizeram novos palácios decorados por artistas como Tintoretto, Ticiano, Giorgione e Veronese. A cidade, que possui 150 canais e quatrocentas pontes, atingiu o seu apogeu no século XV. Com a tomada de Constantinopla pelos turcos e posteriormente a descoberta de novas rotas marítimas pelos portugueses e espanhóis, Veneza começou sua decadência. Mas a cidade resistiu aos regimes, ao tempo e manteve toda a sua beleza e mistério, ostentando todo o aspecto que tinha na época do seu esplendor.
Veneza tem muitas atrações, sendo a mais importante a Praça de São Marcos, enfeitada de colunas e mosaicos; a Catedral, a torre do relógio e o magnífico palácio dos doges. O Palácio Ducal, o Porto de Rialto e o Gran Canal, de quase quatro quilômetros. Veneza, uma cidade que afunda muito lentamente, por si só, é uma grande atração e precisa ser visitada. É uma cidade única, uma das grandes maravilhas do mundo. (L.C.O.)

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