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Guernica

Por Jorge Anthonio e Silva




                                                     
      Guernica - Pablo Picasso - 1937


Em 1937, às quatro horas de 26 de abril, tarde de primavera européia, Guernica y Luno, a mais antiga vila basca, foi literalmente arrasada pela aviação alemã. Orientados por Francisco Franco, comandante dos nacionalistas espanhóis, em vôos rasantes o bombardeio durou, exatas três horas e quinze minutos, o suficiente para promover mais uma tragédia humana. Os, então modernos, Junkers e Henkel despejaram bombas de quinhentos quilos e três mil projéteis incendiários de alumínio sobre a pequena cidade de não mais de dez mil habitantes. Refugiados no campo, os bascos foram impiedosamente alcançados por metralhadoras aéreas, enquanto Guenica y Luno escurecia em fumaça, iluminada apenas por chamas erráticas de insistentes fogueiras. Tudo em escombros, menos a Casa das Juntas, onde a memória guardava arquivos com informações culturais e antropológicas da raça basca. Um tronco seco de aproximadamente 600 anos, com brotos novos do Século XX, ficou intacto na praça central da cidade. Sobre ele os reis da Espanha um dia juraram respeitar os direitos democráticos de Viscaya. Em troca disso, recebiam a obediência basca de os terem como senhores, nunca como reis.


Cinco dias depois, o primeiro de maio, o catalão Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) datou e numerou o primeiro estudo em lápis sobre papel azul, para a tela Guernica (3,50 m x 7,80 m). Eram riscos ainda imprecisos, como a entropia natural da destruição. Apenas sinais titubeantes, sem um léxico definitivo. Uma forma dúbia sugeria um animal, outra, uma possível janela dando para um espaço interior, indicado por um possível canto. Na mesma data, a mão precisa do artista desenhou um touro e um cavalo, elementos de força arquetípica na cultura espanhola, registro de ancestralidade e presença determinante na mítica da força bruta. Como a covarde brutalidade nazista.

A forma cubista se faz em desenho distorcido, como que esculpido a machadadas sobre a tela, criando o tom fragmentário da tragédia. Colocando a arte a serviço do sentimento, Picasso não fez qualquer alegoria ao invasor alemão ou ao que fosse externo ao sofrimento basco. Finalizada meses depois, a tela tornou-se o potente inventário da capacidade humana na produção do horror, no ponto de vista do subjugado, do invadido, do aniquilado pela premeditada vontade de destruição. Graças à inesgotável qualidade de atualização, a obra de Picasso tornou-se ícone universal da natureza obscura humana. Desde sua gênese, o quadro denota, indelevelmente, o fato histórico ao qual não se atém. A guerra é a tragédia coletiva universal e a deformidade proposital um experimento revolucionário do Cubismo. Descoberta a arte africana por Cézanne (1839-1906) no início do século XX, foi incorporada gradualmente por George Braque (1882-1963) e Juan Griz (1887-1927), os três articuladores do novo estilo. O marco público cubista é de 1907; Les Demoiselles D’Avignon, também de Picasso, a primeira criação a incorporar a distorção visual como recurso escultóricos no plano. O termo surgiu como invenção irônica do poderoso crítico Louis de Vauxcelles (1870-1943) ao se referir à exposição de Braque em Paris como feita de “bizarrices cúbicas”. O Cubismo trouxe novo alento de mudanças à cultura plástica ocidental, exausta que estava da figuratividade. Para Eduardo Subiratis, “a confrontação com culturas primitivas teve o significado artístico de uma revelação profética e de uma esperança histórica para os europeus”. Eram românticos anacrônicos, porque inseridos no contexto ágil da industrialização, esses artistas que sentiam esgotarem-se as fontes de criação estimuladas pela cultura da imagem em transformação. Em especial pelas ações transformadoras da fotografia, ágil, cientifica e mais fiel com a realidade, do que os pinceis, o olhar e as tintas. Vincent Van Gogh (1853-1890), profeticamente, buscou novos modelos formais nas gravuras japonesas, e as utilizou para o fundo de obras, como no Retrato do Pai Tanguy. Paul Gauguin (1848-1903) refugiou-se na Polinésia Francesa em busca da natureza ideal, enquanto Henri Rousseau (1844-1910) surgia como o primeiro naïf reconhecido pela cultura oficial, por ordem dos impressionistas. Picasso colecionava máscaras africanas, fascinado pelo sentido original e puro da arte plena de utopia religiosa e simbolismo. Para impregnar-se da vitalidade natural, perdida para a industrialização, o Cubismo aboliu a beleza e adotou a fealdade e a banalidade como temas. Incorporou elementos do cotidiano como possibilidade de volumetrias, colou pedaços de jornal na tela, criando os papier colé, como reforço à idéia de tridimensionalidade nos relevos. Pedaços da realidade adentram a obra como elementos visuais do Cubismo Sintético. Guernica é uma organização espacial do todo, a partir de elementos constituintes feitos de coerência. Optando pelo branco, preto e cinza. Picasso pôde dramatizar pateticamente a cena, pela simbolização tênue da fumaça. Para não realizar um mero relato temporal, a obra não localiza a cidade destruída que lhe deu origem, e vai além do fato histórico. Não há referencia à Casa das Juntas ou aos dez mil habitantes de então. São nove figuras: quatro mulheres, uma criança, uma estátua destruída de um guerreiro com uma espada na mão, um touro, um cavalo e um pássaro. Cada qual com sua carga simbólica de eloqüente desespero. Cada qual à sua maneira expressa sua desgraça interior que se cristaliza em silêncio. Uma das mulheres, a mãe, segura sua criança morta, em grito solidificado de espanto, paradoxalmente, congelado no movimento desesperado de fuga. O corpo do guerreiro caído é tão impotente que se rendeu à gravidade apenas. Não é nada. A fugitiva adentra o ambiente em busca da luz que mais lembra os raios frouxos das salas de tortura, geométricos e finitos. Os gritos plasmados, seja de pessoas, sejam sons de animais, não se diferenciam. O cavalo e a mão são a mesma aderência de desespero involuntário. O grito é uma permanência, a única defesa e única reação elementar diante da desgraça desconhecida. A respeito da pomba, elemento simbólico da paz, Juam Larrea escreve: “sobre a mesa uma pomba é presa de um espasmo como todas as demais figuras, com única exceção ao outro que, bramindo e a e ponto de emergir da ira, com os olhos fixos nas órbitas, parece dispor-se a investir no momento menos esperado” ... “O touro, enquanto símbolo de um povo é a força em sua extensão de potência cujo destino é a morte, ainda que prescrita pela dança elegante e cruel do toureiro. O touro é o totem que legisla sobre a Espanha mítica de tantos santos e reis. O cavalo é algoz e vítima passiva nas tardes de touros, iniciadas irremediavelmente “a lãs cinco de la tarde”, como poetizou Federido Garcia Lorca (1868-1936) em seu Romanceiro Gitano. A solidariedade e a esperança estão encarnadas no gesto ascendente da portadora de luz que invade a cena em efeito crescente, indicando o único caminho à fugitiva. Fora da orientação espacial comum, a mulher da direita gira a cabeça estranhamente e abre os braços para cima ajoelhada em desespero. Embora seja postura possível, a lateralidade com a boca aberta em perfil acrescenta à leitura do rosto o aspecto orgânico da dor. Ela é a antítese do guerreiro, cujo olhar inerte revela o fim. Guernica foi hóspede durante décadas no Metropolitan Museum of Modern Art, de New York. Picasso proibiu-lhe a entrada na Espanha enquanto o ditador Francisco Franco (1892-1975), cúmplice de Adolf Hitler (1889-1945), estivesse no poder. Picasso morreu em Mougins, em 1973. Franco em Madrid, em 1975. Guernica ocupa, desde 1976, uma ala lateral do Museu do Prado, em Madrid, Espanha, onde está Franco enterrado.



* Jorge Anthonio e Silva é jornalista, crítico de arte e professor universitário. Doutor em Comunicação e Semiótica. Escritor, é autor de vários livros, entre eles “Jornalismo Cultural”-Editora Pantemporâneo e “O Fragmento e a Síntese” – Ed. Perspectiva.

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