Conhecida como o berço da langue d’oc (latim nobre surgido na França e usado pelos trovadores da Idade Média), a região da Provença é também famosa pelas paisagens surpreendentes e cores vivas que inspiraram vários artistas – inclusive gênios do porte de Van Gogh e Cézanne, que não se cansaram de reinventar essa terra “onde o sol sempre é forte”, conforme reza o ditado. Ali, os contrastes podem ser violentos a ponto de os moradores de Avignon, antiga capital dos papas, quase parecerem estrangeiros aos de Arles e, por sua vez, os de Aix-en-Provence aos de Marselha. Aquele trecho da França pode ser, no entanto, literalmente uno quanto aos campos extensos, que abrigam plantações sem fim de lavanda e vinho.
Essas culturas ocupam a maior parte do relevo, que apesar de muito dividido possui poucos vales. O ponto mais alto é o monte Ventoux, com 1.909 metros , localizado no extremo norte da região. Quase uma divisa natural, a montanha é responsável por uma série de mirantes e balcões repletos de vistas espetaculares. Muito da personalidade da Provença está relacionado a seu terreno acidentado e, em especial, a sua hidrografia; ao Ródano, volumoso e disciplinado pelas barragens; e ao Durrance, igualmente controlado e dotado de alguns diques.
PAUL CÉZANNE, Montanhas em Provence 1878-1880
Esses cursos de água exercem um papel essencial na história local. O Ródano modela uma das paisagens típicas da Provença; ele desenhou a fronteira histórica e tradicional entre o Reino da França e o Império Germânico – e, posteriormente, entre o Languedoc e a Provença. O vale do Durrance, também, caracterizou-se como um traço essencial. Ele liga o universo rodaniano e os territórios baixos às montanhas e às gargantas italianas. Trata-se de uma região por onde passaram legionários romanos, pastores transumantes e imigrantes por vários séculos.
Apontado como um dos flagelos da Provença, o Mistral – chamado “mestre dos ventos”, conhecido por sua fúria, fustiga os relevos calcários e imprime nas árvores formas estranhas. O Mistral surge do noroeste, ganha impulso no corredor rodaniano, por onde passa, secando a terra e varrendo as nuvens, provocando efeitos aparentemente contraditórios: na mesma área em que destrói tudo que encontra, limpa o céu, avivando o azul e contribuindo grandemente para a luminosidade que define, com algumas cores puras, uma Provença ideal.
Essa terra possui um clima invejável. O total de 2.200 a 3.000 horas com sol no ano é de provocar delírios em qualquer parisiense (um ano tem 8.760 horas). O próprio Van Gogh, aos 35 anos, foi apenas um dos que trocaram o cinzento inverno de Paris pela magnífica paisagem provençal. Conta-se que o pintor holandês, leitor de Dauded e Zola (ambos escritores com raízes na Provença), decidiu passar uma temporada em Arles. A estadia acabou se prolongando por quinze meses, os quais lhe renderam a fantástica produção de duzentas telas, mais de cem desenhos e aquarelas, e quase duzentas cartas, de uma poesia surpreendente.
O ateliê de Paul Cézanne, que nasceu em Aix-em-Provence
Numa delas, o gênio rende-se aos encantos da região: “Eu moro numa pequena casa amarela, com uma porta e janelas verdes, e o interior branco como a cal; sobre as paredes, desenhos japoneses muito coloridos; o sol brilha sobre os tijolos vermelhos. A casa é ensolarada, o céu, acima, é de um azul profundo.” Van Gogh pintou a cidade, o Ródano e suas pontes, o Café noturno, sua casa amarela, e os campos próximos, muitos deles atualmente urbanizados. Arles ainda guarda, porém, muitos encantos. Há lembranças do tempo do Imperador Constantino, que instalou sua residência na cidade no ano de306 e lá realizou o primeiro dos grandes concílios da Igreja, doze anos depois. A Roma, por sinal, Arles deve muito de sua fama e, à Idade Média, sua personalidade – uma identidade meio rural, meio citadina.
Apesar de pequena, Arles é uma etapa obrigatória para quem visita o sul da França. Infelizmente, a cidade sofreu muitas baixas após a Segunda Guerra Mundial, devido às reconstruções e remanejamentos. Mas, na década de 1990 viveu um período de renascimento cultural, com obras de grande porte. Entre elas, a transformação do Hospital Van Gogh em um centro cultural e a instalação de um museu dedicado à glória de sua antiguidade.
Mais ao norte, próximo a Arles, está Tarascon, outra pequena cidade da Provença e famosa por abrigar o castelo do rei Renê (que governou a região no século XV). Diz a lenda que a construção em estilo muito severo foi erguida sobre a caverna do Tarasque – monstro cuja imagem é exposta no Pentecostes e no dia de Santa Marta em algumas cidades do centro da França. Histórias à parte, coube a Louis II d’Anjou erguer o edifício no fim de 1400. Os trabalhos avançaram rápido, uma vez que o papa Benoit XIII poderia ser recebido ali em 1403. A obra foi comandada pelo arquiteto provençal Jean Robert. Na época, sua majestade aguardava a chegada de seu herdeiro – o futuro Luís XI.
O castelo do Rei René. A construção foi tombada e exibe obras de arte e objetos raros do século XV
A meio caminho de Arles e Tarascon está outra joia da Provença: Les Baux. Um dos lugares mais concorridos da região, ela deve ser visitada de preferência no fim da alta estação ou após a época da colheita. Incrustado numa falésia, o vilarejo emprestou seu nome ao minério descoberto na região, a bauxita, e devido a problemas políticos e religiosos foi completamente destruído no século XVII. A visão do forte fantasma e da cidade alta abandonada proporciona um encantamento que levou o prêmio Nobel de Literatura Frédéric Mistral a sonhar transformá-la numa capital, e o cineasta Jean Cocteau a gravar lá seu Testamento de Orfeu.
A provença romana pode ser encontrada em construções como o aqueduto de Roquefavour
O platô de Baux domina, como uma proa, a planície pedregosa que o olhar abarca até Vaccarès e até o mar. O desfiladeiro de Vayède separa este parapeito rochoso do platô de Bringasses e o Val de la Fontaine do platô de Costapéra a oeste. A estrada segue, a partir de Maillane, o Vale do Inferno que, talvez, tenha sugerido a Dante os primeiros cantos de sua Divina Comédia.
Na Gruta das Bruxas foram descobertos lâminas de silex, machados de pedra polida, furadores de ossos, que atestam a presença do homem, dois mil anos antes de Cristo, em Chalcolithique. Mais tarde, outros vestígios revelaram a passagem de populações mais e mais influenciadas pelas civilizações grega e italiana. Cerâmicas modeladas em argila de Vayède, inspiradas na cerâmica siciliana, foram encontradas nas necrópoles, como a chamada “de la Catalane ”, datada do primeiro século antes de Cristo.
A cidade medieval de Baux, logo abaixo das ruínas do castelo
Os celtas-ligures se refugiaram nos picos próximos a Baux, particularmente sobre o platô de Bringasses. Uma cidadela de muralhas poderosas precedia a vila; ela era protegida por um fosso, talhado na pedra, transposto por uma ponte. Outros refúgios parecidos foram encontrados sobre o platô de Costapéra.
A linhagem de Baux: “Raça de Águias, jamais vassala”
Na época em que a Abadia de Cluny nascia na Borgonha, a ordem cristã se impunha em todo o ocidente. O medo se afastava. Na Provença, foram os arcebispos de Arles que encarnaram esta “paz de Deus”. Manassès foi um desses prelados poderosos e autoritários. Ele se cercou de alguns homens hábeis e devotados. Um deles, Isnard, ajudado por toda sua família, não hesitou em apoderar-se de terras eclesiásticas. Ele chegou mesmo a ser excomungado por essas escandalosas espoliações. Como o abade Saint-Martin de Arles possuía domínios no vale de Baux, Manassès deu-os ao seu fiel e ávido Isnard, nos anos 970-978. Desde essa época, um castelo começou a ser construído sobre o rochedo escarpado.
As ruínas do Castelo de Boux, de volta ao reino da natureza
Isnard e seu pai Pons deram nascimento à temível família de Baux. Pouco a pouco, esses senhores acumularam terras e honrarias, tendo o hábito de se associar à autoridade que preferiam e que representava sua bravura. Foi ao final do século XI que o filho caçula de Pons, Hughes, tornou-se Hughes de Baux.
Depois de cinco séculos e muitas guerras, “em nome do rei, a cidadela, símbolo da independência, foi desmantelada.” As ruínas têm um charme secreto. Aqueles blocos de rochas desmoronadas mostram bem a angustiante fragilidade das ambições e construções humanas. O que foi o orgulho dos senhores medievais e dos burgueses da Renascença, a cidadela de belas fachadas, voltou ao reino da natureza.
O vento, o sol e a chuva corroeram sua silhueta inexplicável, amedrontadora e fantástica. Suas ruínas atestam, provam, demonstram o esplendor de um passado que consagra os cavaleiros e os homens sonhadores, os trovadores e os poetas, e a parte mais preciosa e misteriosa: a lembrança.
A lista de personagens ilustres da Provença é enorme e engloba desde os já esperados escritores e pintores até personagens contraditórios como o Marquês de Sade e Nostradamus. A família do nobre, conhecido por seus maus hábitos, é uma das mais antigas da região, tendo lá se estabelecido no século XIII. Já o vidente Michel de Nostre-Dame, conhecido como Nostradamus, nasceu em Saint-Remy-de-Provence e, após algumas andanças pela Europa, morreu em Salon, a poucos quilômetros dali. Entre os literatos famosos que moraram na região encontramos desde Petrarca, o “Príncipe dos Poetas” – nascido em Arezzo, na Itália, mas criado em Carpentras –, até Peter Mayle, escritor americano que tirou da região inspiração para três livros: Um Ano na Provença, Toujors Provence e Hotel Pastis.
Nos pincéis, o grande destaque, além de van Gogh, foi Paul Cézanne. Este, filho de um rico negociante e nascido em Aix-en-Provence, descobriu a vocação tardiamente, mas a tempo de construir uma das obras mais personalizadas do mundo e influenciar uma geração de cubistas e fauvistas. Localizada a vinte quilômetros de Marselha, Aix-en-Provence foi fundada por romanos no ano 123 a .C. e devastada por sucessivas invasões. Tornou-se capital do condado da Provença no fim do século II e reconquistou, ao longo de anos, vários edifícios históricos, como a catedral de Saint-Sauveur, a igreja de Sainte Marie-Madelaine e os museus Granet e o de Tapeçarias.
PAUL CÉZANNE (1839-1906), “O Golfo de Marsella visto desde L’Estaque”, ost 73 x 100,3 cm
Avignon
Habitada desde o tempo dos celtas, a cidade de Avignon é famosa por ter se convertido na residência dos Papas em 1309, quando se encontrava sob governo dos reis da Sicília pertencentes à casa de Anjou. Em 1348, o Papa Clemente VI adquiriu, da rainha Joana I da Sicília, essa cidade, a qual permaneceu como propriedade papal até 1791, quando foi incorporada ao restante da França durante a Revolução Francesa. Houve sete Papas que lá residiram entre 1309 e 1377: Clemente V, João XXII, Bento XII, Clemente VI, Inocêncio VI, Urbano V e Gregório XI. Esse período (1309-1377), em que tais papas estabeleceram residência em Avignon, é conhecido como o Papado de Avignon, que teve início quando o papa Clemente V fixou residência em Avignon, então propriedade do rei de Nápoles, Carlos de Anjou. Em 1377, o papa Gregório XI decidiu recuperar o trono de São Pedro, em Roma, o que não reconstruiu a unidade do papado, mas sim provocou a pior crise de sua história: o Grande Cisma do Ocidente, com dois ou mais papas simultaneamente, em Avignon e Roma, o que só terminaria em 1417.
As muralhas da cidade, em bom estado de conservação, foram construídas pelos Papas logo depois da mudança de residência para esse lugar. O palácio papal, Palais des Papes, é um enorme edifício gótico com muros de 5 a 5,5 metros de espessura, e foi construído entre 1335 e 1364. Depois que a corte papal regressou a Roma, foi utilizado como quartel e, atualmente, é um rico e muito visitado museu.
Outro ponto de interesse em Avignon é a ponte sobre o rio Ródano, da qual só restam quatro dos 22 arcos que inicialmente havia. A ponte, famosa por uma canção infantil francesa (Sur le pont d'Avignon) foi construída entre 1171 e 1185, com sucessivas reconstruções. Finalmente, depois de uma forte enchente do Ródano em 1660, a ponte ficou nas condições que apresenta atualmente. A cidade é palco anual de um importante festival de teatro, realizado desde 1947.
Châteauneuf-du-Pape
A meio caminho entre as cidades de Avignon e Orange, Châteauneuf-du-Pape espalha a sua pequena aglomeração em volta das ruínas de uma fortaleza medieval. O vilarejo de Châteauneuf-du-Pape está situado em plena Provença. Com cerca de dois mil habitantes, dá nome a uma das regiões produtoras de vinho mais renomadas da França e, por extensão, do mundo, já que a produção vinícola francesa é a grande referência no universo da enologia.
Quem visita Châteauneuf tem a impressão de estar mergulhando em uma terra mítica. Na estreita estrada vicinal que dá acesso à cidade, as parreiras estão por todo lado. Algumas são tão antigas que podem passar dos cem anos de idade. A paisagem é dominada pelo onipresente Monte Ventoux, conhecido como “o gigante da Provença”, por ter 1.912 metros de altitude. No centro comercial, as lojas de vinho estão por toda parte.
No extremo sul da França, e da própria Provença, está Marselha. Segunda maior cidade francesa, ela é conhecida pelo intenso movimento e uma história que remonta a quase três mil anos. “Aqui, cerca de seiscentos antes de Cristo, marinheiros gregos vindos da Fócida fundaram Marselha, de onde se irradiou por todo o Ocidente a civilização.” A frase está gravada numa pedra do velho porto da cidade e dá conta do orgulho que têm os moradores de sua nobre origem. A história local está repleta de guerras e alianças envolvendo romanos, cartagineses, etruscos, celtas, francos, sarracenos e catalães.
Marselha foi ainda uma das primeiras cidades do Ocidente a ser convertida ao cristianismo e a testemunhar a chegada das maiores pestes que atingiram a Europa (a de 1347, a de 1580 e a de 1720, esta última conhecida como A Grande Peste). Após viver tantos ápices e derrocadas, não é de se espantar que suas histórias tenham inspirado o escritor Alexandre Dumas, pai, que ambientou na região o clássico O Conde de Monte Cristo. Os cidadãos retribuíram com uma homenagem à altura: deram a duas ruas da cidade os nomes de Edmond Dantes e Abbé Faria, personagens principais da trama.
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